30 de dez. de 2010

eu vi a casa que sou eu

ohlálaáhey!
eu hoje sou como uma casa vazia, nova, linda, pronta para receber os móveis, os quadros na parede e ser habitada por mim mesma mais a legião que me acompanha e me habita o coração. Todos nós, livres e prontos, para ocupar a casa linda, e dar um jeitinho nos restos de cimento e de argamassa deixados, vestígios da construção perene, tirar delicadamente os pinguinhos de tinta fresca. Tudo novo, reluzente: a beleza!

27 de dez. de 2010

o gato

eu sou um gato, mas eu posso virar um cachorro
eu sou um cachorro, mas posso virar um gato
eu sou um gato, mas posso virar um leão
eu sou um gato, mas posso virar uma onça
eu sou um gato, mas posso virar um hipopótamo
eu sou um gato, mas posso virar uma girafa

ele só não pode voar

(música inventada por Luiz, meu amigo, de 5 anos)

20 de dez. de 2010

Separação

sentimento
sentimento
sentimento
sem ti
sem ti
sem ti

19 de dez. de 2010

na direção

De repente, todos os meus retrovisores se quebraram, em mil cacos. Por sorte não me furaram os olhos, porque deles eu ia mesmo precisar – como se verá a seguir. Mas entendi que eu não devia mesmo olhar para o passado.
Seguir em frente.
Estava tensa, insegura, e fazia um barulho horrível com meus pés sobre o acelerador.
– Devo ficar, devo ir? Entro? Saio? Até onde devo ir?
E acelerava horrivelmente sem sair do lugar, o medo da colisão.
– Que encontro é este, meu Deus?
1º encontro. 2º encontro, último encontro: não somos compatíveis com a eternidade, a não ser que se morra.
– Não esbarre nas pilastras, no meio fio, nas pessoas.
Não esbarrarei.
– Eu esbarrei em você, querido?
– Tudo é máquina.
– Tudo é máquina – repeti.
– Máquina estraga.
– Meu organismo, minha cabeça, meu coração.
– Não esbarre nas pilastras.
– Sim, os pilares. O que está em cima também pode desabar.
Colisão, desabamento, nada disso acontecerá. (Psiu, é segredo: à
s vezes me parece que é necessário colidir, desabar para ver o que sobrevive, sabe?)
Seguir em frente.
– Ok, positivo e operante.
– As coisas boas estão aí, é só pegá-las.
Abri um estojo de maquiagem e procurei por pequeno espelho que substituísse os retrovisores quebrados: olhar o presente, olhar para o futuro. Cuidado! Cuidados! Atenção! Não pare na pista!
Ao olhar para mim mesma, olhos nos olhos, vi todo o passado e sua glória de sol em dia de chuva, e seus buracos, buracos, buracos.
– Mas você está então acertando todos os buracos. A gente desvia dos buracos, você não sabe?
Acho que de verdade eu não sabia.
Agora eu sei.
Segui, andando a pé, sem carro, sem acelerador – com minhas pernas grandes que correm léguas.
Texto escrito a partir do gênero intitulado por mim mesma como: fato onírico em esfera ficcional (rs)
Obs: a informação entre parênteses faz parte do nome do gênero.

conto de fadas

Desci da torre. E, para descer, ao invés de cabelo usei uma corda de pedreiro, suja de cimento. Fui ver um príncipe e pensei comigo mesmo:
- Uai, eu desci da torre sem o príncipe me chamar!
Senti-me mal por antecipar o enredo, e resolvi voltar então. O príncipe dormia à la bela adormecida, mas acordou quando eu movimentei o ar de sua mansão. E me propôs sexo.
Mas eu pisava pé ante pé e não queria acordá-lo. Sentia vontade de voltar para a torre. Hesitei entre seus lençóis, desconversei, subi.
Mas subir é muito mais difícil, princesa.

24 de nov. de 2010

diário de vida real

Finalmente plantei as filhotes da Bromélia em um lugar mais apropriado. Já não havia muito o que fazerem na casa da mãe. Incentivei essa saída com palavras e água de chuva porque eu sei que não é fácil sair da casa da mãe. Coitadas, estavam tão fechadinhas, circunscritinhas, que mal se podia ver seu interior. Sei que agora elas vão se abrir mais, ganhar novas camadas de vigor. É assim a vida adulta, deve ser. E, como disse o Vinícius, "quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém". Amor, bromelitas, amor para vocês!
Quebrei mais uma taça de vinho e amei mais uma vez as coisas tão lindas de vidro que eu tenho, todas tão prontinhas para quebrar. As taças tão frágeis de cristal, empilhadas na cristaleira da minha avó! São caríssimas, finas, reluzentes e horríveis - porque nunca foram usadas, (provavelmente nunca irão quebrar). As minhas taças não, todas quebram: sejam translúcidas, lisas, desenhadas ou coloridas, todas quebram. E, antes de se quebrarem, sustentam-se elegantes em hastes altas e finas, numa pose poderosa de quem não supõe uma queda - sempre iminente (pois eu tenho gatos). Ou talvez elas suponham sim, mas não temam. As minhas coisas de vidro, os meus gatos se encarregam de quebrar para mim. Mas hoje não, fui eu mesma quem quebrei uma taça.
E acabou.

22 de nov. de 2010

o dia de hoje não é o dia de amanhã

releio textos antigos em busca de uma sabedoria nova
vejo bem o que é a liberdade
coloco cada pingo de tempo em seu habitat natural: "fora com os relógios!"
gosto de sonho na boca, mel de um novo tempo que virá
detesto essa frase mas a mantenho na página pelo gosto de lembrar do que eu detesto
amo meus dedos cheios de marcas e cicatrizes que são bem a mulher que eu sou
não me orgulho nem me envergonho disso, esse amor
apenas amo de um amor tão mais genuíno que me foi infinitamente difícil saber que era amor
- essa palavra perigosa
não tenho mais melindres com palavras verdadeiras
sei dizer fodas com diversas entonações
e isso tudo não é ainda tudo
nem de longe, de forma alguma

20 de nov. de 2010

tristeza

primeiro acendi uma vela e pedi a tudo o que fosse luminoso: que o sofrimento, dessa vez, fosse menor do que o de antes!
lavei todos os copos e roupas sujas para ocupar as mãos com água e esquecer um pouco dos olhos e do coração tão úmidos naquele momento
senti-me tão seca, resolvi beber água
(vontade de quebrar o copo com as mãos e sentir o meu sangue
só pra lembrar que isto é a que chamam vida)
fui para o quintal e arranquei todos os matos ferozes
me arranhei muito e senti todo meu suor
- essas coisas que também fazem parte do que se chama vida
abracei-me ao pé de laranja justamente porque são seus arbustos cheios de espinhos,
ou seja, mais sangue, a escorrer-me por todo tronco e vestido de seda
vi que os bichos de estimação poderiam estar querendo algum amor que viesse de mim, mas ali estava - logo ali - o pacote de ração e sua realidade sorrindo ao lado

só me restou lavar o rosto e fingir força por mais uma vez
sim - eu continuo viva: eis o sangue escorrendo.

o que é o amor

Ainda que eu fale todas as línguas,
dos homens e dos anjos,
se eu não tiver o amor serei apenas
um bronze que ressoa,
um címbalo que retine.
Ainda que possua o dom das profecias
e conheça todos os mistérios,
que saiba todas as ciências,
ainda que eu alcance um tal grau de fé
que me torne capaz de remover montanhas,
se eu não tiver o amor,
não serei nada.
Ainda que eu reparta todos os meus bens,
entre os pobres,
e deixe então o fogo consumir meu corpo,
nenhum proveito tiro,
se eu não tiver o amor!

O amor é paciente,
o amor é bondoso,
não é nada invejoso,
arrogante,
orgulhoso.
Jamais é descortês
e nunca intresseiro.
Não se irrita,
nem guarda rancor no coração.
Detesta a injustiça,
gosta da verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta.
O amor não terá fim;
as profecias sim.
As línguas calarão
e as ciências têm seu termo.
Imperfeito é o nosso conhecimento
e também as profecias.
Mas quando vier o que é perfeito,
o que é imperfeito desaparecerá.

Quando eu era criança,
falava como criança,
pensava como criança,
como criança raciocinava.
Homem feito, me despojei dos atributos de criança.
Por enquanto,
enxergamos obliquamente,
por um espelho.
Mas, um dia,
nós teremos a visão
- de face a face.
Por enquanto,
conheço apenas uma parte.
mas logo o conhecerei,
como sou por ele conhecido.

Temos agora
a fé,
a esperança,
o amor.
Mas, dos três, o mais excelente
é o amor.

19 de nov. de 2010

sumir no mundo

se pergunta a uma chama de vela qual será o seu fim?
se sabe pra onde vai o amor na sua cadência normal de se esvair?
o som que eu pronuncio ecoa ainda por quanto tempo no universo?
e se eu estralar os dedos quanto mesmo dura isso?
como eu faço para sumir?
de que músculo osso sangue devo me privar
até atingir a transparência?

10 de nov. de 2010

naqueles dias

Eu acordei hoje tateando uma coisa que nunca estaria na minha cama e não falo que é o seu corpo porque este tem estado comigo com muita frequência.
Estava procurando com os dedos o cheiro que costumo sentir no meu travesseiro e que talvez seja resquício dos sonhos que ando tendo.
Procurei, procurei, procurei... e tive uma epifania: eu havia esquecido de fechar os olhos. Fechei, então, mas senti-me mesmo cansada do infinito e berrei:
- Tire esse peso daqui.
Gritei para Deus é óbvio, porque só ele mesmo poderia ser interlocutor de um berro desses. E é claro que a resposta foi um riso suave e calmo, que me dizia sem palavras: o peso é todo seu, querida! O que você vai eliminar para não afundar o seu barco?
E assim foi, acredita?

18 de out. de 2010

diário de vida real

Hoje, salvei uma lagartixa de dentro da boca do gato
mas ele comeu o rabo dela e talvez tenha uma indigestão.
Minha mãe sonhou comigo: eu estava grávida e pari um gato de pelúcia rosa em formato de coração.
Gostei!

17 de out. de 2010

eis que não há sinônimo

"menor" não é o mesmo que "criança"
"planeta" é diferente de "mundo"
e "amor" na minha boca soa outro beijo, não é mesmo?

23 de set. de 2010

incomunicável 2

não há absolutamente nada que eu possa dizer
porque tudo já foi dito.
isto inclusive já foi dito:
qual poeta nunca disse que estava sem palavras?
quem nunca parou, brusco ou delicado, diante da parede do incomunicável?
Ah, minha amiga Amana, pudéssemos nós duas com dedos mágicos apontar: é isso, é isso, é isso,
que eu estou dizendo sentindo fazendo.

inútil, porque todas as palavras já foram ditas e até hoje ninguém entendeu.
todas as cores já foram reconhecidas pela limitada retina humana
e continuaram insuficientes.
e veja: todos os sons, até mesmo murmúrios, até mesmo grunhidos, que já passaram pela glote
e, hoje em dia, o som tão articulado...

quanta técnica vocal já se gastou
quanto fonoaudiólogo
quantos mestres da expressão corporal

e haja papel, e haja película de cinema e tantas fotografias...
e o tato: da mão na pele do rosto, do rosto na pele das coisas, das coisas sentindo o ar.
e sim, já inventaram a telepatia! Está nos livros.

E a humanidade:

o fracasso.
vejam pois aquela foto em que certo presidente oferece a mão para um aperto cordial e o outro declara a guerra.

inútil
insuficiente
incomunicável

eis o fracasso comprovado
há já milênios de humanidade

ainda nos resta uma chance?
nem todos os silêncios foram ainda instaurados.

11 de set. de 2010

minhas flores

Houve uma vez que fiquei 5 dias sem regar as plantas. E quase morri de tristeza quando percebi que talvez as veludinhas (como chamo as lindas folhagens de veludo que ficam misturando vermelho e verde no fundo do quintal) talvez não sobrevivessem tamanha era a falta de viço. Reguei muito e em dois dias elas estavam valentes de novo. Agradeci à sorte de manter um pouco mais aquela beleza que nunca me pertenceu mesmo. Prometi regar com rigor, o que não faço. Agradeci ao tempo e sua capacidade de retorno e destruição, e vice-versa. Acreditei que nós, flores e pessoas, precisamos dessa água ou desse amor, que são inconstantes e susceptíveis de ausência. Acreditei também que é nessas belezas e fracassos que a gente pode ao menos um pouquinho se comunicar com o cosmos, pois acredito mesmo que entre eu e ele há sim algo a se dizer - digo antes da morte, pois depois dela a comunicação é mesmo absoluta.
(Ah, essa frase é bem engraçada: o que lá sei eu sobre a morte?)

9 de set. de 2010

lance

Raio de luz
Ele era um homem bonito, com um tigre na barriga. E que possuía alguma coisa de dourado ou luminoso nos pelos do peito, nos pelos dos olhos, nos pelos das pernas. E o cabelo.
Ele fazia exatamente como todos os homens que senhorita rita conhecia até então: olhava para ela como se fosse capaz de dizer toda a verdade do mundo, mas isso não era verdade. Não mesmo. Senhorita descobrira que aquele olhar carregava outra coisa, uma coisa assim muito simples: era nada.
Sim, ele era um homem como qualquer outro: bonito de tigre e com aquele olhar tão lindo por nada, que queria dizer apenas uma única coisa: estou te olhando.
Na verdade; isso, senhorita rita ainda não aprendeu mas está quase por aprender. Ela ainda insiste em encontrar uns tais significados ocultos, encondidos em algum lugar. Sua supeita é que o segredo se oculte nos fios da barba. Por isso arranca tantos fios, despistadinho, como se fosse um carinho (ela despista porque algumas pessoas sentem grande vergonha de procurarem sinais do oculto).
Os medos de rita
No que diz respeito ao amor, o segundo medo maior de senhorita rita é este: irritar a calma do olhar do homem com uma paisagem feia de ser. Por isso se banha intensamente em perfumes liquefeitos ou vaporosos, corta as unhas e amacia o couro para dormir. Garante sempre a mais sedosa companhia para seu amado. Mas o seu maior cuidado são as leituras: ela se obriga a ler todos os dias pelo menos 29 folhas de pitangueira, 8 pedras e 3 grãos de areia. Lê, lê, lê, porque quer mesmo absorver e irradiar as mais variadas paisagens em seus olhos. Esses cuidados são mesmo imprescindíveis porque senhorita rita não é bonita, e daí que ela se cuida tanto e raspa tanto a pele com pedras poemas, para ver se saí daí alguma talvez delicadeza definitiva.
O primeiro medo: é que o olhar da pessoa amada não contenha perguntas, que seja só um olhar de pessoa terna e bondosa (senhorita rita prefere as pessoas ternas e bondosas, apesar de ter amado no passado um avestruz).
- Mas, infelizmente, olhar de pessoa terna e bondosa não serve para o amor - ela diz às vezes.
Mais uma vez o homem do tigre
E ela então insiste insiste e insiste em olhar no fundo dos olhos daquele homem pré-amado, de cílio dourados, vermelhos e castanhos - o tigre. Procurando uma resposta, uma resposta, uma resposta. Mas até hoje ela ainda não encontrou a pergunta.
Ela continua puxando os fios da barba, continua com as leituras, continua olhando fundo, mas a ela parece que estamos ainda no campo ordinário dos olhares que olham.
O futuro
Um dia seu amado vai chegar com uma surpresa: a barba ausente, completamente raspada, e ela constatará atônita:
- Não tem nada aí!
E se sobressaltará numa conclusão eufórica: era isso então? Os olhos, o nada, a simplicidade. Era esta a grande pergunta, o sinal procurado: você suporta o nada?
E não haverá afinal mais além disso - a não ser o amor.

7 de set. de 2010

O amor que sinto é uma sede de oferecer água.

23 de ago. de 2010

não é segredo

Senhorita Rita acordou com aquela sensação na boca de que ela é insuficiente para o mundo. Que não importa o que ela diga ou faça a resposta será sempre: “– Nada”. Daí que ela escreveu uma carta para seu amado em pedido de ajuda.

Querido.
Às vezes você me pergunta por que eu sou assim tão calada, como diria aquela música que ouvimos e eu digo que a resposta é simples, é porque não há o que dizer quando as coisas estão assim desconcertadas e quando o sol, o dia, a manhã, enfim, amanhecem apesar de mim. Ultimamante (ou seja nas últimas décadas) as coisas andam em mim tão secretas que nem eu mesmo reconheço o que é o mim. Um grande segredo: eu tenho cá comigo dentro um desconhecido que vibra como se a qualquer momento pudesse vir à tona e que não pode mesmo vir à tona. Sabe, não se incomode comigo. Deixe me assim como você me deixou naquela manhã, ir embora sozinha, sem delongas. Cuide da sua vida, e eu em breve saberei – o quanto antes – que não há nenhuma espécie de proteção para o que é frágil: ou seja temos que manusear as caixas na esperança de que não se quebre nada, mas é sempre possível (e provável) que se quebre. Ou você já viu alguma mudança acontecer sem que nenhum bibelô se quebrasse? Ademais, nós dois sabemos que eu não sou um bibelô. Um brinde aos cacaquinhos! (neste momento seria apropriado que promovéssemos o espatifar das taças de cristal).
Besos.
.
PS: assim como os beijos mais ofegantes de Rita, esta carta tem uma infinidade de destinatários.

o segredo

Senhorita Rita acordou hoje com aquela sensação na boca de que o mundo é insuficiente. E escreveu uma carta desesperado a seu amado.

Darling.
E se você me contasse um segredo. Sim, um segredo, alguma coisa aí do profundo?
Talvez você não saiba, talvez já seja hora de saber: eu não suporto que só existam estes toques tão belos e insuficientes (falo dos toques no meu cabelo e na minha barriga, também tão lindos e insuficientes). Preciso de algo como... como um segredo. Sim, é esta uma estratégia para me consolar deste mundo. Deste mundo. Um segredo que falasse do cosmos ou do infinito - não sei qual é maior, como diria aquela frase do filme a que assistiríamos. Ou mesmo segredo pequeno, para começarmos o diálogo.
Não te peço amor, nem estados alterados. Não quero confissões. Não precisa entusiasmo. Talvez eu queira também, depois, que você me escute alguma coisa sussurrada assim em ouvidos, em segredos.
Mas, por hora, de qualquer forma, você podia me contar os seus. Os segredos.
Um trauma, um fetiche, uma insônia. Um segredo.
Peço como um mendigo, pois não tenho mais o que comer.
E que esta seja também a sua verdade: a do que vai além do que se pode ver, os segredos.

PS:Assim como seus beijos mais cálidos, a carta ainda procura o destinatário
.

21 de ago. de 2010

as coisas lindas do mundo

Algumas coisas lindas do mundo são:
sentar em cadeiras vermelhas e novas de um cinema
espiar um casal se beijando por intensidade, sem que eles se deem conta
observar um gato dormindo por 30 minutos e ficar em silêncio
absorver o cheiro do corpo depois que acaba o perfume
limpar unhas sujas de terra fértil
lavar louça com água morna de pia aquecida por serpentina
espionar um mato tremendo de chuva
e o que mais?

20 de ago. de 2010

Memória 5 - com a palavra, o homem

Meu tio quando era jovem há 30 anos atrás conheceu uma moça meio índia, no Pará, onde ele foi trabalhar por um mês. Uma moça meio índia no Pará é o sonho de muitos homens jovens há 30 anos atrás ou hoje. Eu mesma que nem sou homem sou capaz de ver os cabelos pretos dela, ainda hoje. Ele, pré-médico da cidade grande, gostou de dar uns beijos na moça. Não era Iracema seu nome, mas era meio índia do Pará. E eu também a beijaria se fosse jovem da década de 70 morando por um mês no Pará.
Daí que ele voltou para a cidade de Belo Horizonte e passou a receber cartas apaixonadas da moça que morava no Pará. Eu vi as cartas, que falavam de amor infinito e muitos corações. Versos e mais versos, desses que rimam "mar" com "amar". Contavam sobre sua vida no Pará, das coisas amenas que fazia, do trabalho doméstico e coisas dessa ordem. Uma intimidade.
O amor (que nunca esteve por perto) estava agora há muitas léguas de distância. Ele precisava responder às cartas, porque jovem no Pará às vezes jura amor eterno. Mas ele não tinha palavras nem corações para enviar à moça, nem ao menos canetas coloridas ou papéis enfeitados ele tinha. Mas queria responder às cartas.
E veio a estratégia para responder a essas cartas: seu amigo, também jovem da década de 70 e companheiro de trabalho (os dois trabalhavam no projeto Rondon), estava na mesma situação: recebendo cartas de uma moça paraense – outra moça, outra viagem, mesma caligrafia de Iracema.
Meu tio reescrevia essas cartas e mandava para sua Iracema. Que respondia com afeto e paixão sem perceber a impossiblidade daquele discurso pertencer a um homem que passou um mês no Pará e que não – não a amava.
O amigo exigia uma troca, as respostas. Essas cartas de afeto e paixão eram então copiadas agora pelo amigo do meu tio, e enviadas para a outra moça, que também se deliciava com a sorte de ter encontrado um amado de palavras tão belas. Criou-se assim uma fonte inesgotável de palavras de amor. Vindas das mulheres paraenses, velhas senhoras cheias de filhos e netos hoje em dia, jovens de cabelos lisos susceptíveis ao vento naquela época.
Muito mais do que responder às cartas, penso que os jovens queriam testar suas habilidades de se comunicar com o sexo oposto pela via da ardilosidade - o que deu certo. Para as meninas não foi de tudo ruim, elas treinaram a escrita.
Eu vi o maço de cartas. Muito tempo depois, eu era adolescente de 12 anos e li as cartas:
– Mas, tio, e a privacidade da moça? Não deixe ninguém ler estas cartas, nem eu... é uma intimidade.
Dizia isso e lia as cartas, ávida por palavras românticas e distantes (distantes do meu vocabulário, do meu Brasil, da minha idade).
Ao mesmo tempo em que via o deprezo dele por algo que foi enviado como uma preciosidade – as cartas seriam em breve jogadas no lixo – eu também me perguntava: Por que ele guardava o maço? Para mostrar, vaidoso, o amor que outrora lhe fora destinado?
– Vejam, eis a prova, alguém me amou. Sou amado, e superior – porque o recuso.
(Isso é um segredo: esta recusa durou para sempre, ou até hoje, – pobre do meu tio!)
Ou haveria algum afeto que ficou, ali, pairando, enigmático, sendo as cartas sua matéria incômoda?
De qualquer forma, nesse dia, aos 12 anos, eu entendi que não se pode esperar de um homem palavras de amor. Menos ainda cartas. E passei a copiar muitos versos, muitos versos para mandar aos homens que conheço. Versos ingratos, falsos, e cheios de palavras lindas. Digo que são meus, mas estou copiando tudo, de outros amores, estou renovando a fonte. Estou me vingando, em nome de Iracema. E que diferença faz?

12 de ago. de 2010

alto grau de romantismo (mas passa)

Como será que você me vê... É esta uma curiosidade que tenho. Eu mesmo me assusto quando me olho no espelho. Vejo as coisas que eu não sabia que era. Daí, que deve ser fácil cometer equívocos. E é.
Você seria capaz de ver mais que um espelho? Este espelho que vê muito, vê o mundo todo que decide passar por sua superfície.
Diga: você vê o quê? Esses seus olhos espetaculares... o que seus cílios emolduram no mundo. Você fixa o olhar em algo? Já fez isso, fotografia? Quando te olho e você me olha, penso muito no que você está vendo, e quero ser uma aparição em sua frente, um fantasma de luz dourada, epifania das epifanias, alma de todas as almas. Quero que seu olho me faça bem. Tão bem. E nem precisaríamos falar nada, por causa da luz. Mas suspeito que você só tenha olhos para minha mini-saia.

unguento

Providenciei pomadas logo depois que vi os pombos mortos. Mas as pomadas eram pra mim. Feitas de alguma substância enzimática, o unguento se encarrega de recompor, fechar, proteger. Tira as marcas de cicatrização. Li na bula. Passei por todo o corpo. Introduzi nos sete buracos da minha cabeça. Lambuzei-me de enzima. Lambi os dedos. Estou agora com a sensação inútil de que sou saudável e de que não terei a memória ativada pelas marcas daquele tombo. O buraco.

3 de ago. de 2010

curti!

(obs: esse poema deve ser lido com voz sussurrada, cheia do ar mais frívolo)

oh, que bom
você é feliz


veja, que belo, lindas fotos
puxa, eis você subindo o monte Roraima

e agora fazendo pose perto das hortaliças - so cool
ah, e agora curtindo a night em Varsóvia
o papel de parede combina com seu sutiã
olha a foto!

Sorriso
pose
roupas
o esmalte cor-de-rosa: ah! frenesi
paixão de chiclete
lindo demais
seu cabelo
ui

que vida legal!
quantas festas para ir
ah, façamos um brinde
e fotografemos o brinde

uow, você saca este som
e coleciona este selo
e joga este jogo

adoro este poema
uow

:)vou falar em inglês: so nice! junkie. forever.

cloaca.

31 de jul. de 2010

26 de jul. de 2010

Indiana Jones

a mucosa da boca

a parte interna da boca

o que é a boca goela abaixo

a bochecha por dentro

os lábios por dentro

a linha fina que separa a boca por dentro e a boca por fora



Tudo isto percorreste, não foi, navegador de desertos?

24 de jul. de 2010

o que parece ser é o que é

Uma reunião secreta. Não exatamente secreta, mas as pessoas (eu inclusive) foram convocadas para aquele lugar sem saber qual seria o real motivo da reunião. O lugar era uma escola (onde trabalhei há alguns anos atrás). No meu caso, me chamaram para dar uma aula, algo como uma substituição. E, na sala dos professores, eu me deparei com meu pai, minha mãe, minha tia e um advogado (alguém com força de jurisdição a quem chamarei aqui de advogado). Fiquei curiosa para saber o que teria sido dito ao meu pai e à minha mãe para que eles se convencessem de que deveriam comparecer àquele lugar, porque, se tivessem dito o real motivo para o qual fomos convocados, eles certamente não iriam.
E o real motivo para o qual fomos convidados para aquela reunião secreta era este: íamos enfrentar os problemas que nos impedem de sermos felizes.
A reunião começou, primeiro falavam de assuntos burocráticos, um tal testamento, uma herança. Assuntos difíceis de se resolver.
Num momento de impasse, em que se especulava se outros parentes aceitariam assinar alguns documentos, meu pai, até então calado, disse uma frase: O que parece ser é o que é. Mas aí a reunião começou a revelar os seus verdadeiros propósitos:
– Vocês são felizes? Por que continuam juntos? – o advogado perguntou à minha mãe e ao meu pai. Os protagonistas da história.
Fiquei pequena na cadeira, como me acostumei a fazer desde pequena. Na minha casa, esse assunto da felicidade conjugal é um daqueles assuntos intocáveis, intratáveis, tensos.
Minha mãe começou a falar histericamente, tirava muitas coisas da bolsa, papeizinhos e pequenos objetos, e colocava na mesa, como se, com isto, quisesse dizer que ela tinha algo a oferecer, que não estava vazia na relação, que ela fazia esforços para que desse tudo certo. Eu entendia isso porque me esforçava em amor, mas sua linguagem era incompreensível.
Meu pai se levantou e saiu.
Eu olhava com medo as explosões, e sentia que devia dizer algo, que agora eu precisava dar a minha opinião sobre a vida deles. Levantei num ímpeto, atrás do meu pai, e disse, em voz alta, a frase certa:
– Pai, o que parece ser é o que. E está me parecendo covardia.
Meu pai continuou andando, calado e irritado, sumiu nos corredores. E eu sentei-me de novo, triste com a impossibilidade de se resolver aquela história de desamor.
Mas a minha ação surtiu algum efeito: meu pai voltou, calado ainda, e se dispôs a se sentar à mesa, e debater o tema da reunião: o que nos impede de sermos felizes.
Nada se resolveu naquele dia, mas já houve uma mudança. Especialmente da minha parte, pois que tive coragem de dizer o que me atormentava. Parece também que neste momento eu fiz a escolha por qual herança quero que seja a
minha: felicidade é ela.

22 de jul. de 2010

mag mag magnólia

De repente, me deu uma vontade de ouvir "Magnólia", música tão linda. Apresentada numa noite de amor. Sim, amor às vezes dura uma noite, menos mesmo do que a magnólia, flor.
De repente, me deu uma vontade de assistir Magnólia, filme tão doido. Apresentado por um meu amor. Sim, o filme acabou, vamos para casa apanhar uma flor.
De repente, me deu uma vontade de andar pela Magnólia. Seguir a rua toda a vida, verificar o perfume. Essa rua acaba onde mesmo, oh, minha flor?
Rua, flor, música, filme... tudo acaba, não é, meu amor?

21 de jul. de 2010

será que existe ponte?

EU ........../.......... VOCÊ
.....intransponível

EuuuuuuvoooooocÊ
.....compartilhar

16 de jul. de 2010

memória 4

Bye bye, blackbird
Alguns tipos de gente amam pássaro preto. Costuma ser gente que trabalha como mecânico ou borracheiro. Talvez as penas pretas, o óleo, a borracha do pneu... O fato é que observei que muitos mecânicos e borracheiros mantêm algum pássaro preto, numa gaiola triste, e têm lembrança de um tempo em que eles cantavam o mais belo canto. É isso que eles dizem: – O pássaro preto tem um canto magnífico. Talvez eles não utilizem o termo “magnífico”, mas "magnífico" equivale à opinião que eles têm do canto do pássaro. Gaiolas, jiló, forro de jornais... O pássaro magnífico - que eu particularmente sempre achei muito sem graça.
Na minha família, não há mecânicos nem borracheiros, mas houve certa vez um pássaro preto. Na casa dos meus avôs. Um pássaro preto numa gaiola. Lembrei disto ontem, ao me deparar com um deles, dando pulos aflitos em uma gaiola pequena demais para voo.
Eu era pequena, tanto. Na casa do meus avôs. E passava algumas horas conversando com minha avó, que por algum motivo que eu não conhecia – achava que essa devia ser alguma característica particular das avós – não andava. Eu olhava o pássaro preto e nunca tinha ouvido ele cantar. Até entendia o vizinho, que aprisionava periquitos e outras aves amarelas e lindas, mas não entendia porque manter um pássaro preto, triste, na gaiola, comendo aquele jiló tão desagradável.
– Minha avó, pra que serve este pássaro preto, aqui?
– Os pássaros pretos são muito estimados.
– Por quê?
– Eles têm um magnífico canto.
Não respondi imediatamente. Primeiro eu fiz um "ah". Mas, depois de muitas visitas à minha avó que não andava, depois de muito observar o pássaro preto, que não fazia nada, nem mesmo podia ser acariciado, como qualquer outro bicho das estimações, eu disse:
– Nunca ouvi ele cantar.
– É que quando o bicho fica preso assim muito tempo, ele esquece como é cantar. Mas ele já cantou. Muito bonito. É um canto triste.
Observei o bichinho na gaiola, muitos fins de semana. Sempre mantive uma distância considerável, tinha muito medo que ele me bicasse, meus dedos de 6 anos. Pensando, pensando, concluí o óbvio:
– É maldade prender o pássaro preto. Por que nunca ninguém aqui soltou o pássaro preto? Por que o vovô, ou mesmo a senhora quando andava, nunca soltou o pássaro preto? Por que esta maldade? Vocês, meus avôs, minha família, não podem concordar em deixar um pássaro preto preso, ao preço de ele ficar tão triste que nunca mais vai cantar... Eu posso soltar ele agora.
– Não. – Minha avô disse enfática e meio divertida com a minha vontade. Ela estava à beira da morte e sabia bem quem eu seria. – Ele vai morrer, ele já é bobo agora. Não sabe procurar comida, não sabe se defender. Ele seria comido por gato. Ele agora tem que ficar preso.
O que mais me preocupa nesta história é que esta justificativa não fez sentido para mim. Como ela podia saber o que aconteceria se ninguém nunca tinha soltado um para ver? Talvez ele voasse, feliz, lépido, e comeria frutas, e sei lá mais o quê... mantê-lo preso porque ele era bobo? Não fazia sentido.
Não fazia sentido, mas, enquanto houve aquele pássaro preto na gaiola, eu nunca abri a portinha. E me pergunto: Por quê? Por que eu não desobedeci às orientações? Que sabedoria haveria nas palavras de minha avô? Quantos pássaros pretos precisam morrer de tristeza para a gente abrir a portinha e tentar o voo?

13 de jul. de 2010

seção dos amores imaginários ou concretos demais - parte 2

Cada vez mais eu entendo quem é Senhorita Rita em mim. Sei também que a ignorância aumenta, mas entendi que Rita é tudo o que é frenesi, exagero, idéia fixa, convicção e intensidade. Tudo o que é intenso é Rita. A mente frenética. O ardor no corpo. A vontade de escrever, de mexer na terra, de assobiar até o ar acabar dentro de mim: é Rita. Rita é vermelha. E continua escrevendo as cartas, que eu posto por ela. Seu caderninho fica sempre ao lado do leito. Os homens continuam andando nus por sua casa cheia de espelhos. Por qualquer ângulo, é possível ver sua presença ali. Num relance se vê um ombro e suas arestas, por outro ângulo um tórax mais ou menos delineado. É possível observar muito bem quem são eles, o jeito como eles andam, movimentam o corpo, estufam o peito. É essa a nossa tarefa, minha e de Rita: observá-los e escrever sobre sua anatomia.


Amor.

Porque você tem assim um nome tão impronunciável? Nunca consigo gritar por você à distância – e venhamos e convenhamos você gosta de estar distante, hem? Não sei se é alemão ou russo, enfim... nunca conversamos mesmo. Será que esse é o seu nome verdadeiro? Já ouvi falar de seus truques e artimanhas. Você se esconde. Medo? Precaução? Maldade? Pensei em te chamar de lava ou abismo. Mas precisaria ver seu rosto antes e, quem sabe, se me couber este privilégio, te tocar. Sei que você existe porque alguém te viveu e deixou rastros. Gostaria muito de uma carícia. Enquanto isso te arranjarei uns pseudônimos, uns nomes bíblicos, verossímeis conhecidos: João, Mateus, Tiago. Ou ainda, quem sabe, Afonso, Henrique, Bidu? Como te batismo? O que você prefere?

Responda, por favor.

Sempre sua.

rita (também sou santa).


Augusto.

Pretendo te fazer uma declaração de amor, mas ainda não sei os termos. Penso em ti dizer das ladeiras que subi e da paisagem que é você para mim. Não uma paisagem descartável (de tão perene) como a dos cartões postais. Uma paisagem de beleza verdadeira – frágil e mutável – sabe como é? daquelas que só podem existir quando se fecha os olhos. Paisagem indelével, paraíso de mar azul para onde eu possa voltar sempre, amando mesmo as ondas revoltas, o cabelo agitado pelo vento, as pedras encrustadas de pequenos bichos marinhos. Paisagem incapaz de fotografia. Te farei esta declaração e assinarei com todos os líquidos do meu corpo, sangue e saliva. E não entregarei pelo tempo de uma eternidade, porque tenho muito medo. Muito medo de que você rasgue o papel de carta - com o qual gastei todos os meus últimos séculos para perfumar. Preciso de garantias: acaso você saberia que não se rasga sedas nem cartas? Aí, sim. Sabendo de seu talento para o frágil, eu tomaria providências, e você receberia minha declaração perfumosa. Talvez por correio. Talvez num sussurro. Talvez numa dessas mensagens de megafone, em praça pública. Quem sabe garrafinha de náufrago? Talvez pela moça do supermercado, em meio aos anúncios das ofertas-relâmpago. Talvez em silêncio. Nessa declaração prometida, eu te diria muitas coisas, tais como: amor, amor, amor. E depois: pique-esconde. E te desenharia peles de sapos e te chamaria príncipe, só pra poder rir muito. Falaria dez vezes em verde, e 70 vezes em carmim. Prometeria beijos escandalosos e negaria meus lábios pela décima vez. E diria uma vez por todas sobre minha busca, a grande busca: você dentro de mim.


Bonequito lindo.

É claro, meu anjo, que você tem um lugar aqui nos meus arrepios. Pois não é você que sempre me oferece seu peito? Penso que aí é lugar que eu deveria ficar. Às vezes fico errando por aí e então lembro que peito é lugar seguro. Ou não?

Bem, talvez não. Nada é mesmo muito seguro.

E eu preciso ir, a hora é de ir, como dizem as canções.

Confesso que a dúvida latejou de leve, e eu pensei em ficar, quando você revelou um de seus paradoxos. Eu amo paradoxo! Foi quando eu descobri que, realmente, não dá para confiar na superfície, é necessário, sempre, olhar de novo. Eu, por um triz, tremi de amor quando você me revelou sua vontade, a maior de todas. Vi, vaidosa, você ali me olhando, seus olhos pediam, foi aquele quase clamor: me faça poeta, me faça poeta. Estou me referindo à caneta qe você enfiou no próprio coração, tentativa deslumbrada de fazer a alma soar. Lembra? A música?

Arregalei-me por completo diante de ti naquele momento. Mas, mesmo assim, não consegui me apaixonar.

Escrevo esta carta com bondade extrema, para acalmar uma de suas angústias: parabéns, você também é um mistério. E para dizer que torço para encontrares uma boa moça, eu não pertenço a esta categoria.

Adeus, ou até breve - conforme o destino.


Escrevo rápido, Horácio:

É certo, sei que você leu os meus poemas e encontrou uma bela alma... sim, e daí? Eu me pergunto. E daí? Sobre minha bela alma, eu já sabia...


Bidu querido.

Fiz hoje exame de fezes e sangue, e verifiquei que estou saudável. O sangue continua correndo secreto pelas veias, com todo o colesterol que a ciência lhe permite. Mas que dia a felicidade chegará, correndo no mesmo fluxo?

Esqueça o que os seus olhos veem. Lembre-se: estás diante do que não se conhece. Concentre-se na incógnita e prometa que nunca irás decifrá-la. Ande, prometa: “te respeitarei, incógnita, para que sejas sempre bela.” “Te preservarei, segredo, para que sejas sempre busca.” Eu quero muito que fiquemos juntos porque você tem muita conversa e eu tenho muito silêncio, ficaremos à vontade para sempre. Ou até amanhã.

Te vejo em breve.


Riqueza.

Nós vamos nos encontrar. E eu vou sorrir muito, porque é da minha natureza sorrir. E você vai gostar da minha cintura, porque ela é encantadora. E os meus olhos: “– Seriam eles de que cor?” Você me perguntará interessado.

E eu vou me despir, porque é fácil. E vou movimentar ombros e pernas e meus suaves dedos sem esmalte. Vou sorrir mais vezes ainda, porque sou mesmo educada. E verei que tudo isso é bom. Concordamos, então. Mas (o pessimismo e seus mas), no acorde final, verei que não toquei além de sua pele tão acostumada - apenas - com o nascer da barba. E voltarei para casa sem a droga que buscava ao sair. O frenesi que me prometeste junto ao licor que derramou suave em minha orelha, com olhares de veneno. Voltarei sem o veneno. Pois você, em sua imensa gentileza, me poupa de morrer. E eu, ó ingenuidade das ingenuidades, acreditei mesmo que me matarias de beleza. E buscarei novos frenesis, outras promessas, ópios e mais ópios, de todos os continentes. Até que me quede cansada ao telefone e responda a seu convite, a todos os convites: - Não.

Por falar em relevâncias, revelo: Considero o sideral como uma possibilidade. Sou mesmo estranha.

Beijos estrelados.


Sir. Peterson.

Você é como minha mãe: reza reza reza e comete as maiores perversidades. Não se orgulhe. Esta santidade que você procura se chama mulher. Não é engraçado? Nem precisa frequentar templos para achá-las – se bem que alguns consideram que os bordéis sejam espécies de templo. Esqueça Buda, Krishna, Dalai Lama, Jesus e principalmente a Virgem Maria. Afogue-se no seio mais farto que encontrar, permita que elas escrevam indecências em sua barriga. Você já desenhou com batom? Aposto que não. Beije 21 mulheres por 21 dias. Seu corpo precisa se purificar com o cuspe grudento e pesado das meretrizes. Depois descanse quanto precisar, você se lembrará de sua incapacidade real neste mundo. Aí, sim, volte a rezar para Nossa Senhora.

Amém.


Sir. Joahansen.

Você não veio ao nosso encontro. E eu respirei aliviada. Tenho sede de clareza e você é só charada. Eu preciso de um homem e você é magro como uma mulher. Quero enfrentar minha vida e você é um leão medroso e mal alimentado. Minha criança respira forte no coração a cada passo adulto que eu dou. Enquanto isso, você esbofeteia a vida adulta com um cavalinho de pau. Por que razão marcamos esse encontro? Que bom que não vieste. Não venha. Estou bem assim. Bem, muito bem. Bem demais, meu bem!


Oi, Dé.

Menti para você. Você é bom, sim. E sua anatomia é linda. Ah, e eu adoraria sair com você para ir ao... deixe-me ver... ao parque. Comer algodão doce amarelo. Pode ser amarelo? Ou esta cor é estranha demais para a ideia que você faz de mim? Farei do seu jeito, sou subserviente e dócil. E você vai gostar ainda mais de mim, muito mesmo. Ainda mais quando eu tirar as suas mãos do meu joelho... pensarás: que mulher pura! Trata-se de moça de família! E eu sou mesmo, de um outro jeito, eu diria – você não conhece a minha família, não é mesmo? Tá bom, eu cedo mais uma vez. Aceito o algodão doce cor-de-rosa. Para que brigar? Eu não brigo, pelo menos até quinta. Não fique triste. Não tenho péssimas memórias de você. São só memórias... ruins. Ruins. Péssimas não. Vou ao encontro, deixo a conta para você, pois sei que isto te faz feliz, e eu estou meio sem dinheiro. Em troca, ganharei só uma coisinha: a possibilidade de ver que eu estava mesmo certa. Você não presta para mim. Na minha ciência, os opostos se repelem. Essa carta é bem engraçada, não é mesmo? Espero que você ria. Um beijo.


Medusinha linda.

Explico: houve um momento em que, de repente, seus cabelos longos se soltaram medusamente. Você não viu porque seu corpo não estava onde eu estava, é a física. Achei tão horrível que só pude mesmo gargalhar, mas por fora fiquei séria, como você sabe. E aí foi tudo como de costume, beijos, carícias, essas coisas banais de amantes. O extraordinário (ai, que eu me mato por segundos de extraordinário) foi mesmo o desenlace da fita nos cabelos e a Medusa repentina. Eu sonho todos os dias com esta imagem. Mas não devaneio muito, porque tenho horário. E se tivéssemos um bebê? Teria ele cabelos de medusa? Como eu poderia dar à luz? Mas abortei... Era só mais um devaneio breve. Tenho uma ideia: vamos namorar de sério? A condição é difícil de se cumprir como toda escolha: quero você sóbrio e de roupa. Sempre. Pelo menos sempre que puder. Aí eu te amarei (isso não é uma promessa).

Tchau!


Lindinho.

Poderia te chamar de chuchu, meu anjo ou gracinha, mas não sou tão legal quanto os clichês. Então prefiro te dizer que estou sem palavras. Mas ainda assim eu gostaria muito de te nomear. Para isso, teríamos que saber o que um e outro come às terças-feiras à tarde, mas eu sempre te vejo aos domingos... Você aceitaria morar comigo por três dias? Eu te devolvo depois. Para o mundo que você conhece e que me parece tão bom. A minha oferta é que você entre aqui em casa, nesta casa que é também corpo, sabe?, mas uma entrada sem sexo – é só afeto. Afeto tão bom, leve. Mais que isso pode ser invasão. E minha proposta não envolve invasão, até agora só falei em rapto. Ah, não falei ainda? É que se você não vier por esses três dias, eu poderia te raptar. É uma ideia agressiva que tive aqui. Mas as mãos são minhas, os dedos, as pontas, e eu posso tirar quando eu quiser. Mãos ao alto!, e você estará livre do meu mundo. Casa. Corpo. Me desculpe. Não era nada disso que eu queria dizer.

Com amor e pitadas de sal, rita.


Romeu do meu coração.

Não quis te assustar com poesia – se ao menos você estivesse com soluço, a poesia serviria para algo. Neste caso não serve para nada. Não fuja. Eu só disse que meu pensamento se volta para o lado em que você está, às vezes. Não é nada grave. Não morreremos disso. Entenda: não é desdém, é que poesia é fácil pra mim. Não me dei ao trabalho... foi como mato. Fácil. Simples. Inútil. Como dizer: meu amor! Como dizer: te quero! Como dizer: para sempre! Viu? Eu disse e acabou. É assim que as coisas funcionam também com as minhas palavras de poesia. São falsas como as suas. Continue aqui me beijando, sem susto. Pelo tempo que demore o sabor. Talvez seja tempo que traga paixão. Talvez não. Pra mim já foi poético.


Magno.

Minha bússola segue muitos magnetismos e por um tempo você foi Norte, justamente quando eu estava sem caminho. Fique aí queitinho. Continue. Eu te beijarei e irei para outro Norte, o mundo é grande. Nos veremos no inverno, quando a terra tiver dado toda a sua volta e os polos mudarem de lado. Outras atrações.

Um beijinho desnorteado.


Bárbaro de mi vida,

Ah, não. Você só é possível porque está longe. Por isso suma de minhas vistas. Não quero a sua terra firme. E digo que poderia sentir firmeza, caso você não fosse navegar para o Sul logo pela manhã. É isso. Tenho detestado as possibilidades de minha terra, mas também não quero quem voe com tanta facilidade. Eu gostei do seu jeito leve de falar e quase me apaixonei quando você disse ter visto um gato perdido próximo ao banheiro. E era filhote. Nunca vi um homem que observasse filhotes. Tá certo que conheço bem poucos. Homens. Gatos eu conheço vários. Serei fadada a ser próxima de cachorros? Não. Recuso com veemência. Ainda conhecerei alguém com sua sensibilidade, alguém que esteja por perto. Torça por mim, tá? E boa viagem!


Elias.

Outro dia, era noite, encontrei o homem mais fresco que é possível, ele não suportava os fios que se soltavam de meu cabelo e interferiam em sua camisa branca. Era você. Irritava-se ao sentir que minha pele possuía flacidez. Pensei: coitado, talvez ele deseje abraçar um homem careca. E nisso eu não sei como ne transformar, mesmo com toda a minha capacidade de metamorfose. Aí eu fiquei mais miúda, mais miúda, entristeci, confesso, e sumi. Com meus paninhos nas mãos. Com muitas canções na cabeça. Se eu pudesse, eu juro, eu te arranjava um homem careca, Elias, mas sei que meu pai não serviria. Arranje um. E seja feliz.


Oh, baby, baby,

It’s a wild world, né? Você me mandou um beijo e se esqueceu do abraço: beijo sem abraço não é nada para mim, vale pouquíssimo. Aí, quando nos encontramos, você soube da minha fraqueza e me abraçou apenas. E eu fiquei ali, sem beijo. A boca desocupada de palavras e saliva. Aí sim estive emudecida em seus braços. É claro que me apaixonei. Como não? Foi quando tive a revelação de nossa diferença: abraço para você não custa nada! É como água. Igual é a poesia para mim, faço para qualquer um, para um mendigo, um desconhecido da rua, faço sem alma nenhuma. Mas eu podia jurar, com todas as convicções, que sua alma esteve ali por alguns segundos. Há sempre enganos nessa vida, não é mesmo?


Graciosíssimo amor meu.

Não estou. Digo que não estou. Não respondo mensagens. Saio por aí. Emito monossílabos com entusiasmo para te confundir. Cultivo um mistério. E mais misteriozinhos, tolos e fáceis pra quem é mulher. Eu queria ser justa, mas sei jogar sujo – é claro.

Me diga com sinceridade: você quer mesmo que eu te aniquile? Não responda agora. Pense com calma, ainda há a opção de ficarmos juntos e construir uma casa com varanda e tapetes de penas de uirapuru.

beijos apaixonados da sempre sua senhorita rita.


Confira:

seção dos amores imaginários ou concretos demais 1

Mais que tudo

Dois corpos não ocupam um mesmo lugar, mas um mundo pode estar em mim. E eu digo que um mundo tem estado aqui dentro. E eu digo mais: que simultaneamente há 413 mundos em órbita no meu coração (ou pâncreas).

Primeiro mundo: medo
Um frio flui em mim, ressecando mãos, lábios e âmago. Entendo que não fui feita para isso que chama viver, mas não chego a chorar.

Segundo mundo: fantasia
Minhas mãos se esticam fundo, tocando todo o ar ao meu redor, almejam horizontes. Os ombros doem muito de sonhar. Não há sossego neste pesadelo. Apesar de toda a claridade e beleza.

Terceiro mundo: dúvida
Até que ponto minha consciência deve agir? Quando poderei cantarolar versos inconsequentes que dizem para eu deixar para lá, pois a vida leva?

Quarto mundo: força
Sei do meu valor e confio nas atitudes que tomarei. Estanco os pés no chão, preparada para qualquer movimento vindouro. Uma águia se apodera de meus olhos, para que nada escape.

Quinto mundo: languidez
Deito na cama com os 3 cobertores e me ocupo das texturas. Fecho os olhos e só os abro se for em frestas. Permaneço quente em todos os sentidos.

Sexto mundo: fadiga
Vislumbro o momento em que tudo terá fim, para que não seja mais necessário gastar os músculos. Perco os sentidos e concluo: “nunca houve sentido”. Entristeço gravemente.

Sétimo mundo: luta
Vejo os perigos se movendo, é mesmo um filme de ficção. Preparo as lanças que minhas mãos femininas, tão frágeis quanto fortes, mal sabem usar. Luto como um mestre oriental: movimentos contidos, precisão de samurai. Se ultrapassar o medo de matar e ferir, é possível que eu vença. Por enquanto estou perdendo.

Paro por aqui, porque gosto do sete – como já se sabe.

12 de jul. de 2010

ando sonhando

Ando com um pensamento que pesa chumbo prata e níquel e tudo o mais que pesa e não tem valor para uma mulher de menos de 30 anos intelectual alegrinha moderninha risonha independente como cabe à mulher do século XXI que ama a delicadeza como qualquer coisa que não cabe a ela e só tem chumbo na cabeça e não é de bala de revólver.

Ando com um pensamento sonhando barro planta chuá de água e tudo o mais que for leve feito de ar e feito de gás e ouro líquido cabelos maleáveis pele respirando pelos poros até mesmo planta do pé respirando uma manhã que seja verde ensolarada azul amarela ou cheia de chuva plúmbea.

Não quero um corpo sobre o meu, esse peso. Talvez eu não queria nunca mais.

10 de jul. de 2010

6 de jul. de 2010

Pensar

"Um limite é a nossa pele. Até ela (partindo de dentro) sou eu. Partir de dentro é, obviamente, adotar o ponto de vista orgânico, isto é, dos órgãos que nos sustentam a vida (que são vida), mas é, também, o da subjetividade, isto é, o do saber incomunicável que existimos. Saber esse que não é susceptível de mentira.
Para além da nossa pele estão os outros, o mundo das coisas e dos seres que não sou eu. Mas a pele é também um órgão de comunicação: a respiração cutânea, as inúmeras sensações tácteis, sem as quais eu não posso existir. Um limite é, então, um lugar de comunicação. Um limite é o órgão do conhecimento. O limite do pensar é o impensável, que possibilita o pensamento (vida).
[...] o limite do sentir é a insensibilidade, o que equivale à morte. Ambos os temas convergentes e indissociáveis, tal como a vida e a morte. O que em mim vive está morrendo. O que em mim morre está vivendo."
MELO E CASTRO, E. M. de. Livro de releituras e poiética conteporânea. BH: veredas e cenários, 2008.

saudade, morena

"Saudade" é uma palavra inútil. "Saudade" é uma palavra que me veio à cabeça 8 vezes hoje.
Beijei a criança esta tarde e tive saudade. Assisti a um filme esta tarde e senti saudade. Digo: depois do beijo e depois do filme eu simplesmente (e isso não é simples) me deparei pensando: "ai que saudade".
O absurdo desta frase é que ela não se complementou, nem como frase nem como ideia. Não houve (acho que não há) objeto. Saudade de quê?
Eu sinto esse tipo de saudade de alguma coisa que eu não sei o que é. E, se bem perscruto dentro de mim, vejo que eu nunca nem conheci esse isso de que pareço sentir saudade. Saudade de uma parte de mim que me falta? (ah, a falta... essa lacuna é tudo...). Saudade de Deus? Saudade do tempo em que eu, átomo que era, integrava o cosmos, a natureza? Saudade de um bem que me virá um dia? Saudade. Saudade sim.

5 de jul. de 2010

casal vinte

Ele chegou manso, assim do seu jeito de sempre chegar, e não propôs que dançassem uma valsa. Ao contrário disso, disse que nunca, em nenhuma hipótese, iria amá-la. Rita sorriu e concordou:
- É melhor que seja assim.
Ela soube naquele momento que seriam, então, felizes. E disse:
- Vou preparar minha famosa sopa de aspargos.
A sopa de aspargos era uma das especialidades de Rita, ela comprava aspargos frescos e os misturava com um pacotinho de sopa Knorr. Ficava delicioso. É importante estar atento e observar que, ao anunciar a sopa, Rita o fez com o famoso tom hollywood que sabia dar à voz - outra especialidade sua. E anunciar e trazer a sopa, justamente depois da promessa feita por seu homem, de que nunca a amaria, isso deu o tom exato desta cena. Espero que vejam bem quem são os dois protagonistas dessa história: seres humanos irremediavelmente felizes. Felizes daquela felicidade que se vê nos supermercados: o baile dos carrinhos de compra, as embalagens vermelhas de danoninho, crianças loirinhas lindas e loucas com o novo biscoito do Sherek, a viagem ao pólo norte na seção dos congelados. Felicidade sublime, variada, em cada corredor um mundo, uma possibilidade de trombar com o inesperado, de saborear uma nova receita de enlatado.
- Melhor do que isso, só mesmo nunca ser amada - pensou Rita.
- E não amar - eu ressaltaria.
Os dois experimentaram a sopa, que foi elogiadíssima por ele. Como ele sentia frio, Rita o abraçou forte e maternal. Como ela sentia calores, ele fez assim um ventinho no seu rosto e por dentro de sua blusa. Nada podia ser mais confortável do que aquela casa de plástico onde moravam. Balas de framboesa, bombons de licor.
- Ah, esse doce sabor de ilusão.
Um brinde:
- Que a gente não acorde nunca.
E assim foi até o fim dos tempos.
"Amor é o que acontece entre um homem e uma mulher que não se conhecem muito bem." (Sumerset Mougham)

catástrofe

catástrofe
é uma palavra para ser dita ao som de trovão, com a voz de um trovão

catástrofe
é a palavra mais movimentada da língua portuguesa

catástrofe
não cabe em nenhuma estrofe de poema

catástrofe
e as cataduras magníficas da população

4 de jul. de 2010

sinto muito

Você - inominável - já sabe o que eu vou te dizer. Eu vou dizer que não posso mais, não suporto. Agradeço porque aprendi a experimentar a emergência da minha solidão. Ainda ando procurando o tal "sinal certo do amor", as tais filacteras gravadas na cervical. Encontrei alguns hematomas em suas costas, em formato de coração, roxo. Ou púrpura, ou mesmo lilás. Você sabe: isso depende do olho. E quase duvidei de mim mesma, do NÃO impetuoso e positivo que dizia para eu me afastar, andando de costas, olhando em seus olhos, para você ver que eu não estava chorando escondido, de cabeça baixa. O contrário disto. Eu devia dizer mesmo não. Não. Não. Não. E andar de cabeça erguida com todas as lágrimas cabíveis em uma enchente. Os olhos fixos no horizonte: esta paisagem por trás de você. Um desejo imenso de te abraçar, porque corpos são para isso. Nossos corpos sabem disso. E o NÃO. Isso tudo enquanto me afasto, de costas, para trás, os olhos desse jeito que eu já disse, úmidos e fortes. Não quero repetir. Não. Não. Não.
E repito: eu entendo porque comi duas parcelas de seu hálito. E vi que não. Não há alimento aí.

mais um pouco

- Preste muita atenção: se eu te pergunto o que tens a me oferecer e você me responde que são deliciosos beijos no pescoço, aqueles que experimentamos aquela tarde, eu devo te dizer que és banal. Qualquer vampiro me beijaria o pescoço quente. De você, eu quero mais, um pouco.

3 de jul. de 2010

Eva, não traga serpente

eu era mais bonita, mais jovem e mais inteligente
e construí um reino de poder legítimo

sua cama era a praça onde eu levava meu guerreiros para vencer as batalhas
meu grito de guerra eram sussurros ao pé do ouvido
minha lança, projetada à distância, era o olhar

a cada vitória - tão certa como a noite que mais nos encobria do que lençóis -,
comemorávamos (eu e meus soldados)
com o vinho dos bárbaros


e você dormia fatigado
alheio a tudo isto que revelo agora


sempre soube como me purificaria caso me ferisse
eu era só valentia - sem temor

caso me ferisse eu me purificaria:
congelei em temperaturas só possíveis na modernidade
duas gotas de lágrima verdadeira
- do tempo em que eu chorava

eu reinava linda, jovem e vigorosa
no meu reino de poder

pisava em seus ombros com pés macabros
ria de cada fio de barba que eu arrancava com tratores.

Daí, cansei de tudo isto.

Ri minha última gargalhada infame
e em silêncio derramei dois cálices de lágrimas quentes em seu peito aberto
para o bem da cura e transformação

foi o primeiro passo que dei para me tornar mulher
e continua

Hoje não construo mais reinos
e procuro uma comunidade que não existe
não acredito em poder
e não lanço nada disto que uma mulher pode se acostumar a lançar por conveniência:
fio de cabelo, echarpes por sobre o pesoço, borrifadas de perfume

meu olhos gostam de ficar fechados
minha boca só abre se for em frestas
absorvo a bondade
amo o simples
e aproveito cada gota de silêncio que alguém me oferecer por amor.

o namorado dos meus sonhos

Meu namorado era um absurdo. E eu gastei tantos minutos quanto cabe num século para começar a entender por que a vida havia colocado no meu percurso algo de tão equivocado.
Eu poderia namorar um homem loiro. Isto era aceitável.
Eu poderia namorar um homem baixo. Isto era admissível.
Eu até poderia conviver com um homem que usasse blazer comprado nos anos 80. O amor não olha isso.
Mas eu não suportava a voz do namorado que me cabia. E isto eu não aceitava.
E, além da voz irritante, ele era ainda loiro, baixo e usava blazer anos 80.
Toda vez que ele dizia algo, eu balançava as mãos num ímpeto de tapar os ouvidos. Só não realizava o ato por etiqueta social ("- Vejam: ela não escuta o namorado!", diriam).
O pior é que eu nunca o havia aceitado como namorado. Mas ele era o meu namorado. Todos sabiam, só eu não entendia como aquilo ficou assim tão acertado e definitivo.
Já que não tinha jeito, comecei a gostar dele. Primeiro porque lembrei que ele vendia pão, era dono de uma padaria e sempre me propunha comer pães quentes. Gostei um pouco mais porque ele me mostrou as passagens de uma grande viagem que faríamos. E comecei a pensar em efetivar o namoro que todos já sabiam existente quando um amigo dele, horroroso ("Por que meu namorado tem amigos tão horrorosos?", pensava), me cumprimentou com o maior respeito do mundo. E pensei então, quase conclusiva: o que é uma voz irritante em vista de tanto respeito e pão quente? Seria melhor viajarmos.
Com medo, porque não se fica sem ele, vi que um dos caminhos era dizer sim. Em outras palavras, abandonar o semblante desconfiado quando ele me chamasse de "meu amor". Assumir uma postura inequívoca perante ao que parecia tão equivocado: você, homem loiro de voz irritante, é sim meu namorado. Nos amaremos com farinha e calor de forno, porque, sim, eu quero.
Achei, no final das contas, que assim é o amor: essa voz insistentemente aguda que não nos deixa parar onde já nos julgamos tão bons.

22 de jun. de 2010

...

existo

insisto em me apresentar
eu sou a mulher que enterra passarinhos de olhos semi-cerrados assasinados pelos gatos
eu sou a que sabe assobiar todas as canções tristes e por ora é alegre

17 de jun. de 2010

dois de Mário Quintana

SIMULTANEIDADE

- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta


OS DEGRAUS

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

11 de jun. de 2010

com sentimento

Veja bem:
peço desculpas por ter adormecido sua cabeça em meu ventre.
Não quero o seu pensamento assim tão baixo.
De você, o que eu quero é peito.

7 de jun. de 2010

over land and sea

nature boy

Amor, Vinícius de Moraes

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.

6 de jun. de 2010

coloridus est


5 de jun. de 2010

fa-tal

Se você me vir
vestida de preto
e meias vermelhas
e olhos negros
e bocas úmidas demais
e se você sentir um calor
saiba:

isto é um teste
desafio, charada, enigma

um teste para seus olhos:
o que você vê além?
o que você alcança, miopia?
o que podem esses seus olhos sem lente de contato?

você consegue atingir a tristeza

do que sou eu por sob o corpete?

tristeza, beleza, profundidade...
sinônimos nesse caso.

4 de jun. de 2010

tudo em seu repouso mais absoluto

vez por outra, me vem um fundo de tristeza ao perceber que somos um resto de uma intimidade que não existe mais. que conversamos sobre nada se nos encontramos. e não sabemos mais o número para o qual se liga nessas horas. e, se sabemos, seguramos o fone, ainda no gancho, lembrando tantas conversas de outrora que não existirão mais. porque não cabem em quem sou eu agora. em quem é você agora.
um fundo de tristeza, sabe? porque não há mais como continuar a última conversa. o tempo passou demais. permitimos. desejamos que passasse. esquecemos.
mas vez por outra, vem... o fundo de tristeza. saudade de algo que julgamos, ingênuos demais, que era comunicabilidade. (que bobagem! isso não existe.)

31 de mai. de 2010

Eros e Psiquê


António Canova

28 de mai. de 2010

simple red

Uma partitura velha, com marcações arcaicas no pentagrama. Você me tirou isso da pasta e eu que nunca soube que você lia partituras... As folhas amareladas. Um certo suspense: você solfejaria aquilo pra mim. A música falava algo como "Euteamo, oh, querida." E eu pensava: "Que bobagem." E: "Talvez não seja a música certa". Era mesmo uma complexa partitura. Eu não acreditava que você pudesse lê-la.
Você não cantou os outros versos. Parecia não lembrar.
- Mas olhe a partitura.
Os símbolos arcaicos. Uma hesitação sobre o que fazer com aquelas folhas inúteis.
Ligamos o rádio. Eu cantarolei bobamente a música familiar e comercial que tocou. E você disse: Que bom... pelo menos você gosta de Simple Red. Eu não sabia que gostava de Simple Red e duvidei se isso era bom.