20 de ago. de 2010

Memória 5 - com a palavra, o homem

Meu tio quando era jovem há 30 anos atrás conheceu uma moça meio índia, no Pará, onde ele foi trabalhar por um mês. Uma moça meio índia no Pará é o sonho de muitos homens jovens há 30 anos atrás ou hoje. Eu mesma que nem sou homem sou capaz de ver os cabelos pretos dela, ainda hoje. Ele, pré-médico da cidade grande, gostou de dar uns beijos na moça. Não era Iracema seu nome, mas era meio índia do Pará. E eu também a beijaria se fosse jovem da década de 70 morando por um mês no Pará.
Daí que ele voltou para a cidade de Belo Horizonte e passou a receber cartas apaixonadas da moça que morava no Pará. Eu vi as cartas, que falavam de amor infinito e muitos corações. Versos e mais versos, desses que rimam "mar" com "amar". Contavam sobre sua vida no Pará, das coisas amenas que fazia, do trabalho doméstico e coisas dessa ordem. Uma intimidade.
O amor (que nunca esteve por perto) estava agora há muitas léguas de distância. Ele precisava responder às cartas, porque jovem no Pará às vezes jura amor eterno. Mas ele não tinha palavras nem corações para enviar à moça, nem ao menos canetas coloridas ou papéis enfeitados ele tinha. Mas queria responder às cartas.
E veio a estratégia para responder a essas cartas: seu amigo, também jovem da década de 70 e companheiro de trabalho (os dois trabalhavam no projeto Rondon), estava na mesma situação: recebendo cartas de uma moça paraense – outra moça, outra viagem, mesma caligrafia de Iracema.
Meu tio reescrevia essas cartas e mandava para sua Iracema. Que respondia com afeto e paixão sem perceber a impossiblidade daquele discurso pertencer a um homem que passou um mês no Pará e que não – não a amava.
O amigo exigia uma troca, as respostas. Essas cartas de afeto e paixão eram então copiadas agora pelo amigo do meu tio, e enviadas para a outra moça, que também se deliciava com a sorte de ter encontrado um amado de palavras tão belas. Criou-se assim uma fonte inesgotável de palavras de amor. Vindas das mulheres paraenses, velhas senhoras cheias de filhos e netos hoje em dia, jovens de cabelos lisos susceptíveis ao vento naquela época.
Muito mais do que responder às cartas, penso que os jovens queriam testar suas habilidades de se comunicar com o sexo oposto pela via da ardilosidade - o que deu certo. Para as meninas não foi de tudo ruim, elas treinaram a escrita.
Eu vi o maço de cartas. Muito tempo depois, eu era adolescente de 12 anos e li as cartas:
– Mas, tio, e a privacidade da moça? Não deixe ninguém ler estas cartas, nem eu... é uma intimidade.
Dizia isso e lia as cartas, ávida por palavras românticas e distantes (distantes do meu vocabulário, do meu Brasil, da minha idade).
Ao mesmo tempo em que via o deprezo dele por algo que foi enviado como uma preciosidade – as cartas seriam em breve jogadas no lixo – eu também me perguntava: Por que ele guardava o maço? Para mostrar, vaidoso, o amor que outrora lhe fora destinado?
– Vejam, eis a prova, alguém me amou. Sou amado, e superior – porque o recuso.
(Isso é um segredo: esta recusa durou para sempre, ou até hoje, – pobre do meu tio!)
Ou haveria algum afeto que ficou, ali, pairando, enigmático, sendo as cartas sua matéria incômoda?
De qualquer forma, nesse dia, aos 12 anos, eu entendi que não se pode esperar de um homem palavras de amor. Menos ainda cartas. E passei a copiar muitos versos, muitos versos para mandar aos homens que conheço. Versos ingratos, falsos, e cheios de palavras lindas. Digo que são meus, mas estou copiando tudo, de outros amores, estou renovando a fonte. Estou me vingando, em nome de Iracema. E que diferença faz?

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