30 de dez. de 2009

desejo de ano novo:

não querer tanto assim, meu Deus.

27 de dez. de 2009

um mundo que é só escuro

hoje eu descobri
que sonho símbolo charada
é coisa de outro mundo
um mundo em que eu não vivo
um mundo sem forma nem tempo
sem espaço sem corpo sem tato
em que o escuro só aumenta

não. não tem fim lá não

um mundo onde é só buraco
o mundo do caos loucura
onde não há fundo nem teto
onde eu nunca vou lá
do qual eu tenho que fugir
de leve sem abandonar
ao colocar os pés no chão




----------------------------

ps:
pior que este mundo
(em perigo e imensidão)
só este aqui dos textos
este da pretensão

pretensão de saber tudo,
expressar o que é oculto e vive na escuridão

esta página aqui tão branca clara límpida atraente
me dá esta amarga idéia:
sim, eu posso, eu sei, decifro, devoro-te, degluto
toda sabedoria que eu tenho fica presa nesta função
ingênua, limitada, frenética
nem é sabedoria não


sem saber que nós, humanos, temos, por condição,
que namorar o que é secreto,
sem vela ou lamparina
parca revelação

mas um dia eu saio dessa

ou não?

26 de dez. de 2009

não sou bailarina

De onde você tirou esses arranjos florais para a minha cabeça? A última coisa que eu seria neste mundo é ninfa.
Pare de me ornar com véus, tudo o que eu não sou é pura.
Esqueça as bruxarias nórdicas. Meu feitiço é de outro tipo.
Para além dos sapos, não acredito em príncipes.
Por favor, tire esse damasco da minha boca.
E não... não me diga que pensou em me vestir com este tom de pele.

Muita coisa, muitos mundos, muitos perfumes secretos
podem se esconder por debaixo de uma pele branca.
Você nem sabe...
Nem eu...
Dispa-me, e veremos.

22 de dez. de 2009

no vermelho

por que eu não nasci homem, meu Deus,
pra contemplar as mulatas,
garotas de Ipanema,
boemia e tomar cerveja,
e depois, com melancolia,
poder brindar o azul?

por que eu não nasci em Marte, meu Deus,
pra ver este outro ângulo,
este que eu não vejo,
o do planeta azul?

por que eu não nasci mais forte, meu Deus,
para quebrar o nariz de quem pensa,
quem pensa ter este sangue,
este líquido sangue azul?

por que eu não nasci mais rica, meu Deus,
para desfilar os colares,
ilhas e silhuetas
nadar nas águas mornas
voar de helicóptero
e colecionar topázios azuis?

por que eu não nasci mais pobre, meu Deus,
para acordar mais cedo,
fazer bem bem os cálculos,
não precisar de analista
e visitar a família,
subindo no ônibus azul?

por que eu não nasci burrinha, meu Deus,
daquelas alunas loirinhas,
cabelo bem esticado,
sonhando apenas com, um dia,
tirar uma nota azul?

por que eu não nasci antes, meu Deus,
naquele tempo outro, naquele país distante
longe do que eu conheço, onde eu pudesse de novo
começar um futuro brilhante
de ouro purpurina contraste
um futuro que soasse
como um cometa azul?

você.....tum tum tum tum...

... não serve pra mim

"Não fique triste, não se zangue
Com tudo que eu vou lhe falar
Sinto demais, porém agora
Tenho que lhe explicar
Você comigo não combina
Não adianta nem tentar
Não vejo mais razão nenhuma
Pra continuar

Não quero mais seu amor
Não pense que eu sou ruim
Vou procurar outro alguém
Você não serve pra mim
Não serve pra mim

Uma palavra de carinho
Jamais ouvi você falar
Seu beijo tão indiferente
Foi o que me fez pensar
No tempo que eu estou perdendo
No amor que eu tenho pra dar
Deve existir alguém querendo
O que você não quis ligar

Não quero mais seu amor
Não pense que eu sou ruim
Vou procurar outro alguém
Você não serve pra mim
Não serve pra mim"


Renato Bastos

20 de dez. de 2009

o último encontro (antes do primeiro)

é o quê?
sorvete?
jogo do knicks?
cinema?
mais um poema?

(tenho muitos)

ou a realidade escancarada?

ou lencinho de donzela
voando pelos ares?
uma declaração de megafone?
nudez total?

A que horas tira-se a saia?

Tá certo.
eu desapareço então.

escutei o seu pedido aqui no pensamento.

18 de dez. de 2009

imagens primordiais

essa floresta
as feras

encontro o espelho
olho fundo
choro

as lágrimas
molham o solo
alimentam as bestas

subo a torre que não poderia faltar
prisão de princesa
espero o beijo

o beijo
inevitável no sonho
assombroso nesta outra realidade sem torres ou escadarias

16 de dez. de 2009

se eu pudesse perguntar

Primeira parte
No campo do amor - sim, este texto fala, mais uma vez, deste território perigoso -, há pressa para se amar. Há necessidade de saber quem é o outro. O outro do outro lado do aperto de mão, o outro elo do desafio do encontro-primeiro-encontro, aquele que combinou de fazer mais uma tentativa de olhar fundo nos olhos, além da pupila.
Nesse caso, pergunta-se, num desespero educado de voz e sorriso, angústia de mascarados: Quem é você?.
E uma série de outras perguntas insanas.
Descobri por estes dias (defino: "por estes dias" = desde que eu nasci) que as perguntas mais essenciais são de outra ordem. Não são Onde você mora?, Quantos anos você tem? nem Qual é o seu nome?
Se eu pudesse, eu faria, num questionário minucioso, de delicadezas e exatidões - para além da matemática dos números -, as seguintes perguntas ao meu possível amor:
- Quantos séculos você poderia acariciar uma pedra quente de sol com o seu rosto?
- Você chora? Quanto de lágrima enche seu copo?
- Você sabe se é verdade que é melhor chorar dentro de rio, na mistura das águas?
- Você fecha os olhos para cantar?
- Você gosta muito daqueles insetos que nadam na pele da águas?
- Tens dó de matar barata?
- Como é o seu olhar ao deparar-se com sangue? Tens verbo para esse tipo de definição?
- Se eu te pedisse, você pegaria no meu braço com a mão suja de lama?
- Quanto tempo disponível você tem para combinarmos uma volta ao mundo?
- Você ama as antas? E os jabutis?
- O que você sente quando vê, num acidente, uma panela de arroz quente e branco cair no chão?
- Qual é a importância dos arredores da boca em um beijo?
- Com quantas equações você advinharia meu telefone?
- Achas possível viver sem um filhote por perto? Filhote de qual bicho você prefere? Gente?
- Se eu te dissesse que sou capaz da maior tristeza, morrerias de susto?
- E se minha alegria tiver a imensidão de um céu com via-láctea, você me acompanharia?
e por aí vai...
perguntaria mais...
porque é infinito...
a dúvida tanto quanto a vontade de saber.
.
Segunda parte: a angústia
O pior de tudo é que eu sei que você (você que mora no meu pensamento e que é capaz de me ler) dará as respostas melhores de todas. Nãs as que eu espero, não as que combinam com as minhas, mas as respostas mais certas. Certas surpresas.
O fato é que eu sei que você (você que nunca terá força suficiente para encarar os meus lábios vermelhos, mostruosos), infelizmente, é do tamanho do meu sonho, e eu não precisei esperar.
O fatal é que você (que encaixa na minha esperança, que coincide com minhas orações), você deve ser esquecido com toda a força, porque, no campo do amor, quando se tem uma certeza, ela só pode estar errada.
O errado é que eu te elevo, fazendo-te irreal e inexistente. Distante.
O absurdo é que eu não acredito em nenhuma destas atitudes sensatas de esquecimento e "bola pra frente" que eu mesma enumerei.
Daí, eu suspiro. Limpo o pensamento com a toalha úmida, bebo champanhe porque sou chic, fumo nada porque eu não fumo, tento ser humilde na minha impotência. Choro bastante. Escrevo para distrair.
E é só isso mesmo.

12 de dez. de 2009

consolação

começa com ciúme
exclusão:
ele está lá
no riso folia festa

e eu aqui
solidão

ele está lá
orgia gargalhada drinks

e eu aqui
solidão

não há festa em que eu caiba
solidão

ele ri
eu, lamento.

ele dança.
eu aquieto.

ele outros
eu só eu

no fundo, ele perdeu
essa oportunidade:
aprofundar-se
a solidão

no fundo
eu fui mais fundo
solidão

11 de dez. de 2009

Estudos sobre o romantismo

Parte III: "O que fazer"*
.
"Minhas angústias de conduta são fúteis, cada vez mais fúteis, infinitamente fúteis. Se o outro, ocasionalmente ou negligentemente, me dá o número do telefone de um lugar onde posso encontrá-lo a tantas horas, fico logo afobado: devo ou não devo lhe telefonar? (De nada serviria me dizer que posso lhe telefonar - esse é o sentido objetivo, razoável da mensagem -, pois é precisamente dessa permissão que não sei o que fazer.)
É fútil aquilo que aparentemente não tem e não terá consequências. Mas para mim, sujeito apaixonado, tudo o que é novo, tudo que incomoda, é recebido, não como um fato, mas como um signo que é preciso interpretar. Do ponto de vista amoroso, o fato se torna consequente porque se transforma imediatamente em signo: é o signo e não o fato que é consequente (pela sua repercussão). Se o outro me deu esse novo número de telefone, isso era signo de quê? Seria um convite discreto para fazer uso imediatamente, por prazer, ou apenas caso fosse preciso, por necessidade? Minha resposta será ela própria um signo, que o outro fatalmente interpretará, desencadeando assim entre ele e mim um tumultuado entrecruzamento de imagens. Tudo significa: por essa proposição, fico preso, ligado ao cálculo, me impeço de gozar.
Às vezes me canso de tanto deliberar sobre "nada" (como diria o mundo); tento então, num sobressalto, como um afogado que toca com o calcanhar o solo marinho, voltar a uma decisão espontânea (a espontaneidade: grande sonho, paraíso, poder, gozo): pois bem; telefone-lhe, já que você está com vontade! Mas o recurso é vão: o tempo amoroso não permite alinhar a impulsão e o ato, fazê-los coincidir, não sou homem de pequenos 'actings-outs'; minha loucura é equilibrada, ela não é vista; é imediatamente que tenho medo das consequências, de qualquer consequência: é o meu medo - minha deliberação - que é 'espontâneo'."
.
* BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso.

9 de dez. de 2009

desejo

deitar o rosto na relva macia
seu peito
sentir brilhar os olhos fechados
absorver tudo o que é quente morno tépido
não sobrar no fim do mundo
encontrar
bastar

não necessitar de nada mais do que uma companhia
a sua (imagine!)
abandonar a imaginação a seu terreno de imaginação
não corresponder com fantasma

sentir vibrar o pulso na energia de um lance de dados
vibrar qualquer coisa na garganta que seja música
entoar a melodia com os dedos
dos pés

deixar que você observe o esplendor que há em mim
enquanto contemplo o vivo em seu diafragma

estourar tímpano e pulmões com a gargalhada mais brilhante
assobiar livre todo o ar que houver em mim
não necessitar de oxigênio para viver
delirar com gás carbônico

estar pronta para a vida
(ou talvez prontidão)
mesmo surpresa
dar conta desse peso
equilíbrio
sobre os dois pés - os instrumentos que tenho
tocam o chão

desejo tocar o chão enquanto vôo
elevo-me
leveza

5 de dez. de 2009

Dias radiantes

Uma vontade muito forte de comer misto-quente, daqueles que comia com minha mãe, quando íamos peregrinar pelo centro, me veio hoje.
Lembro como andava livre naquelas épocas. Minha mãe, dizia: vamos sair. E eu ia, puxada pela mão, dobrando as mesmas esquinas de sempre, sempre desconhecidas para mim, menina, aqueles caminhos que não sabiam nada do que interessava a uma criança. Não eram para criança (era muito depois do ônibus). Era de mãe, que guia e puxa os filhos para ir ao banco ou resolver problemas que não me ocupavam – apesar de estas resoluções práticas formarem quem eu sou hoje.
Seguia simplesmente, não precisava definir itinerários e me bastava saber que, sempre, no final, haveria a promessa do misto-quente. Minha mãe nunca prometeu e não há nada mais sabido do que uma promessa que não precisa ser feita. Eu era tão pequena e sabia tudo: sair de casa com roupa de sair, esperar ônibus em pé, sentar no colo da mãe, andar muito sem atrasar o passo, misto-quente.
Eventualmente comíamos pastel com guarapan (ainda hoje admiro o sabor desta conjunção), mas o habitual eram os mistos-quentes. Na lanchonete de moças de uniforme cor-de-rosa forte com bonezinho (visualize o tom: não era rosa choque, não era rosa claro). Radiante. Lembrei o nome da lanchonete: Radiante. As moças de bonezinho.
Era no centro e tinha lanche depois que minha mãe resolvia seus problemas de adulto. Eu não escolhia o caminho, eu não escolhia o cardápio e era bom. De nada disso eu sabia. Só sabia que deveria andar com ela e reclamar nada. Depois o pão tostado, manteiga nas duas superfícies. Mesma proporção de queijo e presunto. Tostado, suculento, salgado. E sempre haveria refrigerante (mesmo se fosse para dividir com irmão).
Antes disso, alguns anos antes, eu era mais novinha. Antes de sair, sempre às pressas, eu tomava uma mamadeira de leite quente com açúcar. Eu era grande e tomava mamadeira. Quantos anos eu tinha? Que enigma era tudo isso. Eu era grande para uma mamadeira, certeza. A prova disso é que eu pulava a roleta do ônibus e já era proibido para minha idade. 6 anos? 7 anos?
Eu tomava mamadeira de leite antes de sair e sentia náusea. O doce saculejava em meu estômago. O quente.
Não é possível que eu tomava mamadeira nessa idade. Talvez fosse só leite. Estou misturando a memória. Meu irmão tomava mamadeira. Eu, só o leite, no copo mesmo. Não sei.
Mas enjoava. E segurava forte o pensamento para não passar mal, porque a viagem era longa, vinha das periferias. Eu era tão pequena. 8 anos?
Até hoje quando enjôo sinto sabor de borracha de mamadeira e leite e quente e açúcar.
Melhor mesmo foi a época do misto-quente na radiante lanchonete de moças pobres de cabelo duro e uniformes cor-de-rosa.
A gente lembra cada coisa. Hoje eu lembrei disso – que é saudade.

1 de dez. de 2009

fui ali e aprendi

que
é importante se descoligar do passado. Do passado que foi há um segundo atrás;
não é bom dormir igual a um bicho, extenuado. É importante descansar e depois dormir;
seria bom termos como prioridade a idéia de mudar quem a gente vem sendo: costumes, ranços, manias. Fazer diferente movimenta o universo;
ter interesse pela mudança é pouco, o interesse é só intelectual. O importante é colocar na prioridade da vida;
deve-se fazer jejum de vez em quando, não de comida ou água (jejum=ato heróico), mas de pensamentos. Se eu sempre penso numa pessoa querida, alguém que eu amo, devo deixá-la em paz um pouco. Fazer jejum de idéias fixas;
pensar que há algo que é vida (independente de ser física) além de nossa compreensão faz nosso pensamento ficar menos pesado;
pensar nos problemas deixa o pensamento e nossa vibração pesados. Pensar nas coisas elevadas, além da materialidade faz a gente vibrar mais leve. Pense assim: há uma vida lá em Júpiter que eu não entendo. Mude a configuração do seu pensamento até ele se acostumar com o que é sutil;
essa vida que existe para além de nossa compreensão é igual à nossa no sentido interior, parece que vibra parecido (mas mais leve);
é difícil, mas importante estar em contato com o que é sutil;
os ossos devem ficar menos densos, devemos enxugar o excesso de líquido, pesado, em nosso ser (seja lá o que isso significa para você). Cada um sabe o que é enxugar, a sua maneira;
não se deve comer demais, é importante deixar um espaço para a leveza;
só usamos 8% de nosso intelecto, daí que além de elevarmos nossa inteligência sutil, devemos ampliar também o intelecto.
mas aprender mesmo demora.

29 de nov. de 2009

bichos do tabuleiro

Por que será que eu me sinto do outro lado do tabuleiro quando te vejo?

Vejo os seus olhos refletindo alguém que não sou eu e tenho vontade de gritar: injustiça! Traição! Quem é essa aí?

Já me vi suprema nos seus olhos. Onça toda predadora.

Já te vi me vendo um coelhinho rosado. Aí nos seus olhos.

Se me quiser ver nos bichos, se esta for a metáfora, eu escolho tamanduá. Ou então calanguinho bonitinho.

ode à interrogação

Se eu escrevo
e peso
radical
melancólica
taxativa
conceitual
pré-conceitual
grave
absoluta

eu coloco aquele sinalzinho
curvinha mais bonitinha
que é a interrogação
e quase que
tudo se resolve
(a não ser mesmo a dúvida)
no sem certeza que respira
no "não sei" mais levinho
no descompromisso
não-solução
na humildade mais humana
na manutenção da ignorância

porque interrogação continua
prorroga
e tudo o que eu peço é vida depois da morte

e viva! que eu não sou Deus.
(às vezes eu esqueço)

uma poesia que eu queria

Eu queria fazer uma poesia sem pele.
Sem coração nem amor.
Uma poesia que falasse de pardal e graveto.
Pedregulho.
Eu queria que pedregulho não fosse palavra demasiada.

Seria uma poesia
- essa que eu quero –
sem amargor nem urgência.

(Será que o que eu quero é mesmo poesia?)

isto me enfrangalha muito

Como eu não soube inserir vídeo aqui neste sistema, de blog, como eu sei ainda muito pouco sobre essa comunicação desse mundo virtual. Só posso mesmo é colocar um link. E dizer: assistam, assistam, assistam!

panelinha

sim
eu tenho um grupo
todos neste mundo
se ajuntam
por que eu não?

eu também quis um
por direito

por muito tempo
achei-me out
sem bando
temi a própria estranheza:
que humano seria eu,
afinal, qual a minha
gangue, trupe, filial?

aí eu soube
que sim
eu tenho um clube
que não é raro nem exclusivo
(você também pode entrar
qualquer um pode mesmo)

é um grupo sem sede
(se não considerarmos a alma)
sem doutrina
(esqueçamos a póíesis)
sem visual
(apesar da tendência aos farrapos)

não é grupo grande
mas ocupamos muitos becos
mundo afora

fazemos reuniões noturnas
(na hora perigosa e exata
em que os ares do mundo
fervem em ondas de pensamento
mesma noite sem fuso-horários)

trata-se do grupo
(você o conhece)
dos que não se agrupam

andam sós
seus livros e piolhos

andam sós
e se encontram no silêncio

andam sós por rejeição
(não recusam quase nada
- pois amam o mundo -
são mais é rejeitados
- cheiram mal)

veja
não somos tão poucos:
agora mesmo
ouço o "oi" de um amigo
que veio balançar o pensamento
para meus lados
(ele não disse nada
mas o ar vibrou diferente)

estamos sempre juntos,
ou seja, sozinhos,
nas casas ou esquinas

é fácil estar no grupo
porque
é fácil estar sozinho

digo
sozinho mesmo acompanhado

digo
não é nada fácil

já tentei sair do clube

tentei cortar o vínculo
mas eles não me deixam
me puxam em silêncio

no fim (que me resta fazer?)
aceito
este triste pertencimento ao nada

27 de nov. de 2009

se fôssemos

Imagine se fôssemos íntimos:
dividiríamos água na bacia
fartaríamo-nos de biscoito
(maria)

picaríamos cebolas
cozinharíamos maçãs
alimentaríamos sabiás

eu te inventaria receitas
- de bolo de abacaxi

você me inventaria canções
- dois ou três versos por dia

não andaríamos sós com versos na cabeça
- mãos dadas

eu seria bem mais mulher:
os fogos que acenderia

Você, mais homem,
beijaria-me a ponta dos dedos

Já pensou se fôssemos íntimos?
Que bárbaros mundos perscrutaríamos?
Que sólidos ares construiríamos?

o que é que haverá lá atrás das estrelas?

"Ai compadre
Tenho vontade de ouvir uma música mole
que se estire por dentro do sangue;
música com gosto de lua
e do corpo da filha da rainha Luzia

que me faça ouvir de novo
a conversa dos rios
que trazem queixas do caminho
e vozes que vêm de longe
surradas de ai ai ai"

(Cobra Norato, Raul Bopp)

26 de nov. de 2009

experiência de limites

o medo a rosa
o medo a rosa
o medo a rosa

às vezes mais medo
outras, mais rosa

a rosa: um caminhão de frutas
um brilho no estômago
um sabor

é claro
mesmo de noite

o medo: machucados nas peles de mil
a fronte desassociada do rosto
uma dor

que eu não conheço de todo
e já não suporto metade

o medo a rosa
o medo a rosa
o medo a rosa

às vezes mais medo
outras, mais rosa

24 de nov. de 2009

encontro: Manoel de Barros e Guimarães Rosa

(desenho de M.B.)


"Por impulso de admiração peguei em Porto Esperança o vapor Fernandes Vieira que levaria o escritor Guimarães Rosa até Corumbá, pelo rio Paraguaio. Era de noite entre árvores. Águas paradas no escuro. Calor e mosquitos levaram os passageiros para os camarotes. Manhãzinha, outro dia, um vento macio e alvo soprava. Rosa saíra cedo do camarote. Estava sentado no tombadilho tomando fresca. Do bolso da paisagem borboletas queriam escapar. Rosa abriu a paisagem e as borboletas saíram. O corpo do vapor quase tocava nas árvores do barranco. Andava essa lancha que nem um cágado travado. Dava pra ver rancho amanhecendo. Talvez uma chácara amanhecendo. Dava pra ver um curral de bezerros, um homem e um menino pardos. Eu fabricava coragem para puxar uma prosa com aquele João. Nessa hora as mariposas relavam na água as bundas. Uma anhuma rasou por cima de nós, tocando fagote. Eu disse para o Rosa ouvir: O canto desse pássaro diminui a manhã. Rosa pôs tento. Ele tinha uma sede anormal por frases com ave. Me olhou sentado na frase e se riu para mim. Gostou que eu estava fraseando no vento. Quer dizer que esse anhuma diminui a manhã? ─ ele perguntou. Eu disse: um homem que não tem ensino me ensinou. Ele não tem informação das coisas, mas adivinha. Rosa disse: Quem acumula muita informação pode perder o Dom de adivinhar. São as obscuridades coerentes do povo. Vai daí começamos a prosear lourenço. "
BARROS, Manoel de. Revista Cultural, Paraguay, ano 1, n.1, [s.p.], abr./maio, 1995. [referência aproximada]


Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no
meio da Ilha Lingüística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
Sabedoria se tira das coisas que não existem.
A tarde verde no olho das garças não existia
mas era fonte do ser.
Era poesia.
Era néctar do ser.
Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda, Manoel
Ela tem um bonito corpo fônico além do
propriamente.
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
Por instinto lingüístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado de espinhos e bem
emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.
E era.
BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

22 de nov. de 2009

Estudos sobre o romantismo

Parte II: "José Matias"
Vê se ajuda a entender:
José Matias é apaixonado por Elisa - viúva de Matos Miranda e agora casada com um homem de bigodes negros (o Torres Nogueira). Ao ficar viúva, Elisa quis casar com J. M., que, espantosamente, a recusou.
.
"Havia, porém, uma tremenda e dolorosa mudança - a do José Matias! Adivinha o meu amigo como esse desgraçado consumia os seus estéreis dias? Com os olhos, e a memória, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, nas janelas, nos jardins da Parreira! Mas agora não era de vidraças largamente abertas, em aberto êxtase, com o sorriso de segura beatitude: era por trás das cortinas fechadas, através duma escassa fenda, escondido, surrupiando furtivamente os brancos sulcos do vestido branco, com a face toda devastada pela angústia e pela derrota. E compreende porque sofria assim, esse pobre coração? Certamente porque Elisa, desdenhada pelos seus braços fechados, correra logo, sem luta, sem escrúpulos, para outros braços, mais acessíveis e prontos... Não, meu amigo! E note agora a complicada subtileza desta paixão. O José Matias permanecia devotamente crente de que Elisa, na profundidade da sua alma, nesse sagrado fundo espiritual onde não entram as imposições das conveniências, nem as decisões da razão pura, nem os ímpetos do orgulho, nem as emoções da carne - o amava, a ele, unicamente a ele, e com um amor que não deperecera, não se alterara, floria em todo o seu viço, mesmo sem ser regado ou tratado, como a antiga Rosa Mística! O que o torturava, meu amigo, o que lhe cravara longas rugas em curtos meses, era que um homem, um macho, um bruto, se tivesse apoderado daquela mulher que era sua! e que do modo mais santo e mais socialmente puro, sob o patrocínio enternecido da Igreja e do Estado, lambuzasse com os rijos bigodes negros, à farta, os divinos lábios que ele nunca ousara roçar, na supersticiosa reverência e quase no terror da sua divindade! Como lhe direi?... O sentimento deste extraordinário Matias era o de um monge, prostrado ante uma Imagem da Virgem, em transcendente enlevo - quando de repente um bestial sacrílego trepa ao altar, e ergue obscenamente a túnica da Imagem. O meu amigo sorri... E então o Matos Miranda? Ah! meu amigo! esse era diabético, e grave, e obeso, e já existia instalado na Parreira, com a sua obesidade e a sua diabetes, quando ele conhecera Elisa e lhe dera para sempre vida e coração. E o Torres Nogueira, esse, rompera brutalmente através do seu puríssimo amor, com os negros bigodes, e os carnudos braços, e o rijo arranque dum antigo pegador de touros, e empolgara aquela mulher - a quem revelara talvez o que é um homem!
Mas, com os demónios! essa mulher ele a recusara, quando ela se lhe oferecia, na frescura e na grandeza dum sentimento que nenhum desdém ainda ressequira ou abatera. Que quer?... É a espantosa tortuosidade espiritual deste Matias! Ao cabo de uns meses ele esquecera, positivamente esquecera essa recusa afrontosa, como se fora um leve desencontro de interesses materiais ou sociais, passado há meses, no Norte, e a que a distância e o tempo dissipavam a realidade e a amargura leve! E agora, aqui em Lisboa, com as janelas de Elisa diante das suas janelas e as rosas dos dois jardins unidos rescendendo na sombra, a dor presente, a dor real, era que ele amara sublimemente uma mulher, e que a colocara entre as estrelas para mais pura adoração, e que um bruto moreno, de bigodes negros, arrancara essa mulher de entre as estrelas e a arremessara para a cama!
Enredado caso, hem, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E concluí que o Matias era um doente, atacado de hiperespiritualismo, duma inflamação violenta e pútrida do espiritualismo, que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chinelas, a pele pouco fresca ao acordar, um ventre enorme durante seis meses, os meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e tormento, porque certo materialão, ao lado, se prontificara a aceitar Elisa em camisola de lã. Um imbecil?... Não, meu amigo! um ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor."
.
"José Matias" é um texto de Eça de Queirós, que reflete criticamente sobre a postura idealizadora do romatismo. É legal!
Vale a pena ler o texto! Lê aí:

pequena prisão domiciliar

nada me alimenta mais:
este sonho
que consome todas as minhas energias

paro por completo
o sangue
não vejo o relógio
não escuto seus planos

não como
e canso do paladar de mim mesma

não leio
e não suporto mais letra que seja

o pensamento é turbilhão

os cheiros da minha cama revelam quem eu fui ontem

lavo tudo
limpo
livro

mas não movo um músculo

o pensamento é turbilhão
pensamento
músculo?

No espelho estou tão magra e pálida!
Fatigada mesmo
movimento interno
só posso mesmo descansar

resta
deitar suja na cama suja
deixando pingos no chuveiro
aberto por inútil propósito
agredindo a ecologia

devoro os nós dos dedos
os restos
até retomar os quilos perdidos
coro
saudável de sangue
perfumo-me e saúdo o dia

exalo um cheiro estranho
bem mais do que eu
irreconhecível

e saio por aí
ainda presa em algo
que sou eu

20 de nov. de 2009

muitas sombras

Muitas sombras.
- Sombras?
- Isso mesmo que você entendeu.
E eu tinha entendido fantasmas. Fantasmas pela floresta. Manchas brancas. Fumaças fortíssimas, tocáveis. E era.
- Não se separem, em hipótese nenhuma.
Os fantasmas ativariam em nosso âmago uma vontade de se perder, de se afastar uns dos outros.
A única salvação era ficarmos juntos. Puxei todos para perto de mim, para o centro do caminho.
Suor, cansaço.
Medo demais.
Além de ser mais forte que a vontade de me perder, precisava também fazer força para que os outros se esforçassem. Puxei golas, braços, ombros: fiquem. Era difícil manter o grupo na estradinha de terra.
Os fantasmas giravam no entorno, eu os via (ainda não era com os olhos, em breve seria).
- Protejam a cabeça. Arrumem o sentido. Os fantasmas lançarão fumaças. Pedras de ar, trouxas impalpáveis, volumes abstratos. Protejam a cabeça. Não recebam nada que vier deles. Novamente algo no estômago irá reluzir, borbulhar. O âmago será ativado. Haverá uma vontade fervente de olhar, receber, aceitar. Não olhem, não aceitem, não recebam. Protejam a cabeça. Com as duas mãos. Não recebam nada dos fantasmas. Só haverá saída, se protegerem a cabeça. Só haverá saída, se protegerem a cabeça. Protejam a cabeça.

17 de nov. de 2009

Estudos sobre o romantismo

Parte I: Caetano Veloso
Qual você esccolhe?
.
.
"Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Apenas sei de diversas harmonias bonitas, possíveis, sem juízo final..."
(Fora da ordem)
.
.
.
"Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior. Com todo o mundo podendo brilhar no cântico. Canto somente o que não pode mais se calar, noutras palavras sou muito romântico."
(Muito romântico)

Vão dançá?

A dança é celebração, a dança é linguagem. Linguagem para aquém da palavra: as danças de cortejamento dos pássaros o demonstram. Linguagem para além da palavra: porque onde as palavras já não bastam, o homem apela para a dança.
O que é essa febre, capaz de apoderar-se de uma criatura e de agitá-la até o frenesi, senão a manifestação, muitas vezes, explosiva, do instinto de vida, que só aspira rejeitar toda a dualidade do temporal para reencontrar, de um salto, a unidade primeira, em que corpos e almas, criador e criação, visível e invisível se encontram e se soldam, fora do tempo, num só êxtase. A dança clama pela identificação com o imperecível: celebra-o.
Tal é a dança do rei Davi diante da Arca, ou a que encantava e arrastava num turbilhão sem fim Meviana D'jellal ed'dim Rumi, o fundador da confraria dos dervixes rodopiantes (mawla-wiyya), e um dos maiores poetas líricos de todos os tempos. Tais são também todas as danças principiativas, todas as danças qualificadas como sagradas.
Mas tais são, ainda, na vida dita profana, todas as danças populares ou eruditas, elaboradas ou de improvisação, individuais ou coletivas, as quais, em maior ou menor grau, buscam uma libertação no êxtase, quer ela se limite ao corpo, quer seja mais sublimada - na medida em que se admita que haja graus, modos e medidas no êxtase.
O ordenamento da dança, seu ritmo, representa a escala pela qual se realiza e completa a libertação. Não há melhor exemplo que o dos xamãs, pois eles mesmos confessam que é com a dança, acompanhada pelo seu tambor, que se consuma a sua ascensão para o mundo dos espíritos. Da Grécia e de seus mistérios, da África, pátria dos orixás e do vodu, ao xamanismo siberiano e americano, e até nas danças mais livres do nosso tempo, por toda parte o homem exprime pela dança a mesma necessidade de livrar-se do perecível. As numerosas danças rituais para pedir chuva não diferem, nesse sentido, de nenhuma maneira, da mais trivial dança amorosa e a extenuante dança do sol, dos índios das pradarias norte-americanas, bem como as danças de luto da China antiga põem a prova a alma, procuram fortificá-la e conduzi-la pela senda invisível que eleva do perecível ao imperecível. Porque se a dança é provação fervente, e prece, ela é também teatro.
No Egito onde as danças eram tão múltiplas quanto elaboradas, elas traduziam, segundo Luciano, em movimentos expressivos, os mais misteriosos dogmas da religião, os mitos de Ápis e Osíres, as transformações dos deuses em animais e, acima de tudo, os seus amores.

Chevalier & Gheerbrant. Dicionário de símbolos.

não quero mais estrategema

não quero mais estrategema
porque eu sonhei com aquele menino correndo
e
vi

vi aquele menino correndo
aquele menino que era menino novo

e, no novo, é simples
simples assim
simples e só

eu fico aqui
e
vivo

você aí
e
vive

e pronto!
Nunca pensei que separar fosse tão fácil.

16 de nov. de 2009

Escuta procê vê

os palhaços costumam ser tristes

12 de nov. de 2009

Os peixes

Fui almoçar. Normal - se isto não estivesse ocupando lugar de raridade nos meus últimos dias. (É que às vezes eu me perco nos fios do tempo e teço fomes intermináveis).
Mas o daí é que no restaurante (que, por sinal, tinha limonada grátis) passava um documentário sobre peixes - talvez achassem que isto ajudaria na fome e no peso do prato.
Muitas imagens. De mar e praia. Meu olho batia na TV, nos intervalos das garfadas, e via, a cada hora, um bicho do mar diferente. Era um documentário sobre a diversidade.

baleia
leão marinho
peixe palhaço
tartaruga
escafandrista

- As larvas de lagosta parecem fibra de vidro.

Era tudo tão bonito e azul que conclui mesmo que só podia ser inútil (não a lagosta, mas o programa, como este texto).

Num dos meus olhares para a tela: um desses bichos molengos de fundo de mar. Esponjoso, disforme, confundia o chão. O documentário contava sobre seu ritual de acasalamento. O bicho piscou algo que parecia um olho, deu umas voltinhas, recuou, voltou. A fêmea? Imóvel, agarradinha ao chão cinza cor-de-sua-pele.

- O macho tenta tudo o que é esperado de sua espécie e nada. É um peixe frio.

Então, eu achei que era comigo (já disse da minha mania de achar sentido?).
Aquele narrador falava comigo e minha pele cinza e minhas voltinhas.
É que eu já fiz isso e nem sou macho. Nem peixe.

Digeri tudo aquilo com humilhação.

Mas talvez fossem só peixes.

O amor que eu um dia

"Não se afobe, não,

que nada é pra já


O amor não tem pressa ele pode esperar


em silêncio

Num fundo de armário
na posta-restante


Milênios
Milênios


no ar"

11 de nov. de 2009

erros de digitação

lama alma
alma lama
tudo é barro

triste traste
traste triste
não quero nenhum deles

pau pai
pai pau
Édipo manda lembranças

tina tona
toma tina
eu também sou Tina

amor maor
porque tudo é tamanho

e continua

cada um tem o oráculo que pode

Não digas: "o mundo é belo".
Quando foi que viste o mundo?
Não digas: "o amor é triste".
Que é que tu conheces do amor?
Não digas: "a vida é rápida".
Como foi que mediste a vida?
Não digas: "eu sofro".
Que é que dentro de ti és tu?
Que foi que te ensinaram
Que era sofrer?

In: MEIRELES, Cecília. Cântico. 3. ed. SP: Moderna, 1983.

Não sei se é bom ou ruim.
Se é certo ou errado, mas leio esse livro,
como minha mãe já fez,
como um guia espiritual,
um livro de sabedoria,
uma espécie de bíblia ou i-ching.
E faz tanto sentido...
Talvez eu tenha essa loucura
- admito -
a mania de achar sentido.

o cão kazacuta

"Um dia era de tarde e vi o tio Joaquim dar banho ao Kazucuta. Um banho de demorar. [...] Lembro o Kazucuta a adorar aquele banho, deve ser porque era um banho sincero, deve ser porque o tio punha devagarinho frases ao Kazucuta, e ele depois ia adormecer. Kazucuta: lembro bem os teus olhos doces a brilhar tipo um mar de sonhos só porque o tio Joaquim – o tio Joaquim silencioso – veio te dar banho de mangueira e te falou palavras tranqüilas num kimbundu assim com cheiros da infância dele."

Trecho do livro Os da minha rua, do escritor angolano Ondajaki.

10 de nov. de 2009

isto me enfrangalha


ciropédia ou a educação do príncipe


You find my words dark? Darkness is in our souls, do you not think? (James Joyce)


1
A Educação do Príncipe em Agedor começa por um cálculo ao coração. Jogam-se os dados, puericultura do acaso e se procura aquela vértebra cervical de formato de estrela ou as filacteras enroladas no antrebraço direito: sinal certo do amor.

Em Agedor o Príncipe é um operário do azul: de suas mãos edifica - infância - as galas do cristal e doura o andaime das colméias: paz de câmaras ardentes.

O Preceptor - Meisterludi - dá o tema: rigor! As matemáticas: cáries de uma série gelada. Linguamortas: oblivion sangrando a raiz dos árias: ars. Linguavivas: amor.

O Príncipe, desde criança, é um aluno do instinto. Saúda as antenas dos insetos. Ave! às papilas papoulas e à clorifila - salve! tornassol das espécies sensíveis.

[...]

Ele orienta as abelhas. Ele irisa as libélulas. Ele entra o palácio dos corais e suspende os candelabros.

À hora dos deméritos o Mestre diz: Rigor!

Infância do Príncipe: água de que se fartam infinitas crianças.

(Haroldo de Campos, 1951)

e tem mais assim:

"O Príncipe aprende a equitação do verbo. As palavras ódio e amor nada significam em Agedor - pois significam tudo."

mais intenso que o fogo

esse fogo
fogo
queima minha nuca

esse fogo
fogo
sobe na garganta

esse fogo
fogo
não me deixa calar

esse fogo
fogo
irrita meu esôfago

esse fogo
fogo
sorri pro querosene

esse fogo
fogo
volúpia e luxúria

esse fogo
fogo
vem da inquisição

esse fogo
fogo
é pentecoste

esse fogo
fogo
é desejo natural

esse fogo
fogo
acende meu cigarro

esse fogo
fogo
seu isqueiro me piscou?

esse fogo
fogo
me leva ao inferno

esse fogo
fogo
agita minha cabeça

esse fogo
fogo
sobe até o céu

esse fogo
fogo
é purificação

esse fogo
fogo
castiga o meu ventre

esse fogo
fogo
me enche de azia

esse fogo
fogo
aqui na minha orelha

esse fogo
fogo
esquenta o meu sangue

esse fogo
fogo
a febre me ultrapassa

esse fogo
fogo
veja o rubor

esse fogo
fogo
só apaga quando eu choro

9 de nov. de 2009

saudação a Walt Whitman

“Work (Hoops)”, do artista Atsuko Tanaka

"Quem degrada uma pessoa me degrada... e tudo que se diz ou se faz no fim volta para mim.

Por mim passam muitas vozes mudas há tanto tempo,
vozes das intermináveis gerações de prisioneiros e escravos,
vozes dos doentes e desesperados e dos larápios e anões,
vozes dos ciclos de preparação e crescimento,
e dos fios que conectam as estrelas - e do útero e do sêmen paterno,
e dos direitos dos que são oprimidos pelos outros,
dos deformados e insignificantes e chatos e imbecis e desprezados,
da neblina no ar e besouros rolando bolas de estrume.

Por mim passam vozes proibidas,
Vozes dos sexos e luxúrias....vozes veladas, e eu removo o véu,
Vozes indecentes, esclarecidas e transformadas por mim.

Não cruzo os dedos sobre a boca,
Cuido bem dos meus intestinos tanto quanto da cabeça ou do coração,
A cópula não é mais indecente do que a morte.

Acredito na carne e nos apetites,
Ver e ouvir e sentir são milagres, como é milagre cada parte e migalha de mim.

Sou divino por dentro e por fora, torno sagrado tudo o que toco ou que me toca;
O odor dessas axilas é um perfume mais caro que uma oração,
essa cabeça mais cara que as igrejas, bíblias, e todas as crenças."

Fragmentos de "Folhas de relva", de W. W.

3 de nov. de 2009

foi só isso

Houve um instante, breve instante, em que eu pensei: "Então é isso. Não há mais nada". E o destino cruel (pude ouvir seu riso maligno e mesmo agora meus olhos se apertam de ódio ao lembrar) cochichou: "Olhe para seu punho". Eu olhei, porque não havia outra coisa a fazer senão olhar. Não se desobedece destino, ainda mais quando basta seu sussurro para ocupar todo o ar ao redor.
Aí eu vi... Vi aquilo por que esperava há muito - tempo que confunde relógios: um pedacinho de tecido se soltava de meu punho, uma linha tão puída que era quase mesmo a pele. Seria pele se eu olhasse de novo, mas não deu tempo, porque eu vi a linha se soltando e se dissolvendo no ar. Por um instante, linha, pele e ar eram uma coisa só. E eu disse não. Não, mil vezes não. "Eu ainda não estou preparada". E uma voz (acho que era mesmo o destino. Ou Deus. Ou algo equivalente) disse sim.
E eu olhei ao lado e havia um moço se aproximando numa câmera lenta, em boca de beijo, tipo um bico. Eu disse: "Não. Mil vezes não. Eu não quero este."
Os olhos arregalados, um medão. Desejo que a linha se amarrasse novamente no meu punho, mas era mesmo um trapinho, só dos lixos. Quase gritei, com o corpo todo tremendo, o som entre os dentes: "Amarrrra!". Se eu gritasse seria um daqueles gritos de criança que quer o doce da vitrina a todo custo e acredita que a guloseima atravessará o vidro com a força do seu grito.

Mas sufoquei grito e tremor, porque me achei já grandinha e tive vergonha, e daí que o que contive teve a dimensão de uma aventura.
E o beijo veio porque o moço (repugnante - devo dizer - loiro e plácido) já estava perto demais. E a voz, que ainda ria de maldade, me mandou calar, advinhando a vontade do grito (é que meus olhos me traíam).
Eu queria ser mais forte que o laço que se quebrava, eu queria ser soberana a tudo aquilo que me acontecia sem minha permissão, e, sobretudo, eu queria dizer um palavrão bem impróprio para aquele tal destino ou Deus ou coisa equivalente.
Aí eu pensei em chorar, porque era o mais óbvio. Mas não achei justo. Porque não dava mais para voltar a esse ponto.
Então aceitei o beijo. O que me calou bem fundo e me engoliu as lágrimas.
E o destino riu, riu. Me abandonando pequena, ocupando apenas o meu lugar.

2 de nov. de 2009

alguma coisa de trágico e definitivo

Quando eu tinha meus dezessete anos, fazia uma idéia do amor. Pensava do amor maravilhas. "vou ser muito feliz, muito feliz", era o meu sonho, o meu desejo profundo. E, depois, quando me enamorei, quando me apaixonei, descobri a mais estranha das verdades: não havia entre o meu amor e a felicidade a menor relação. Eu amava e era infeliz. Descobri ainda, outra verdade: eu era infeliz, ele era infeliz. E não tínhamos culpa nehuma, nenhuma. Não fazíamos nada para merecer o nosso infortúnio. Lembro-me que, na época, uma senhora amiga, de vasta experiência amorosa, dizia assim:
- Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo.


(myrna. ou melhor, nelson rodrigues)

-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

Vamos admitir que o amor não passa de uma ilusão - E daí? Antes de mais nada, qualquer ilusão é susceptível de eternizar-se, de durar a vida inteira. Quantas pessoas não vivem e morrem com uma série de ilusões? Quantos homens e mulheres não vivem iludidos. E, nesse caso, que diferença fará uma ilusão de uma realidade, tanto mais que ela exista para enfeitar, para embelezar, para poetizar a vida?

[...] Que seria de nós, que seria da vida, que seria do mundo, se, de repente, todas as ilusões desaparecessem da face da terra?

- Ninguém mais suportaria a vida, ninguém mais suportaria o mundo.

Portanto, o amor pode ter todos os defeitos, menos esse. O fato de ser ou não ser uma ilusão não exprime nem uma virtude, nem uma falha. Só uma coisa, na realidade, importa: o tempo que durará a ilusão. Digamos que seja eterna. Impossível desejar um bem melhor, uma sorte mais lírica e mais feliz do que uma ilusão que resiste a todas as provas e acompanha a pessoa até o túmulo.

(myrna. ou melhor, nelson rodrigues)



deu o sidney em mim

"Quando alguém abandona outro alguém
Devia ao menos dizer: vou de trem
Adeus meu bem e passe bem" (itamar assumpção)

"Desde que nasci
Acho natural
Tanta solidão
No esplendor do carnaval" (ná ozzetti)

"amor é fogo" (camões)

"opa! vc pecebeu?
Quase caímos

n
o

s
i
l
ê
n
c
i
o

esse abismo que passou." (eu mesmo)

"a mulher pode se privar de pão; de amor, nunca" (myrna)

28 de out. de 2009

aqui nos xacriabá

ciência do casamento
se um homem descascar uma laranja e a casca quebrar, ele não dá conta de uma família.

ciência do sonho
o sonho tem vários significados. Através dele, ficamos informados do que irá acontecer de bom ou de ruim na vida.
Ao sonhar com ovos, por exemplo, não pode contar pra ninguém, porque significa fuxixo. Levanta da cama bem cedinho, antes que o sol saia, vai ao fogo e abre um buraco no meio das cinzas, e cochicha três vezes, dizendo que sonhou com ovos. Pode também abrir um buraco e contar o sonho (três vezes), depois tampa com a terra e põe uma pedra por cima. Para o fuxico não sair. Depois disso, pode contar pra quem quiser.

caminho de santiago
é uma parte mais estrelada do céu, que anda muito. Os físicos chamam de via-láctea.

prévia do livro de Ducilene, Vanilde e Anide Xacriabá, que ficará pronto em 2010! O livro está sendo preparado, chama-se "Sabedoria, crença e ciência". E é lindo demais.

26 de out. de 2009

poeminhas de amor à-toa


foi impressão minha
ou
você me chamou de
demônio
iara sereia súcubo górgone
?
eu sou apenas uma mulher
ou uma intenção disso.
(PS: Não busques o anjo).

************

isso que você procura
aqui ali em Londres
nas fronteiras tropicais
além do Nilo ou do Prata
nas vidas intraterrenas
no cosmos da via-láctea

está

aqui

no meu regaço

bem aqui
onde há peito
e respiração

************

para ser amor, só falta isso: passividade
deixe-me assim feminina, esperando
isso que eu ainda não sei
tô lutando

para ser amor, só falta isso: ação
fique assim bem homem
na coragem ousada de quem toma

isso você não sabe
aprenda

o contrário:
os velhos erros

eu espero
corpo de espera
a visita é sua
estarei na janela
************
agora
só falta
saber seu cheiro
sabores
(da alma eu já sei)

23 de out. de 2009

O balde era marrom

Hoje, agora, há poucos minutos atrás, aconteceu coisa imensa: toda a tolice que eu carregava em mim se despejou em cima de meus próprios cabelos, deixando-me como naquelas cenas de novela em que a moça (pobre moça) leva um balde de tinta de um colega malvado. E ela, desolada, vai chorar escondida, toda verde ou amarela (nunca entendi por que elas não choram no chuveiro, tão mais prático)... Aí, vem sempre um moço bom. Ah, os moços bons... e seus lenços e caronas em cadilaque.
Pois é, hoje, agora, há poucos minutos atrás, caiu um balde de tolice e molhou os meus cabelos e omoplatas. E não houve moço que secasse minhas lágrimas, mas isto não tem problema pois já estou acostumada à hipocrisia de minha auto-suficiência e posso muito bem fingir que não preciso chorar. (Psst: os travesseiros continuam molhados).
O fato é que a tolice que habitava o meu ser se despreendeu com força e levou de mim um pouco de mim.

E eu soube que:

Número 1: não, os ímpetos de amizade não são universais. (Há alguns minutos atrás, eu achava que todas as pessoas do mundo seriam, em breve, amigas e compartilhariam comigo algumas flores de maio. Além de minha recompensa especial por sempre ter acreditado nisto).

Número 2: não, não se fabrica amor deste tamanho.

Número 3: a minha existência não vai salvar o mundo, só porque eu tenho ótimas idéias (cerca de 83 por dia).

Número 4: não há comunicações perfeitas e tudo isto pode mesmo dar em equívoco.

Número 5: não há a opção "foda-se". A merda sempre volta se não for bem saneada.

Daí que eu me senti bem limpinha. Depois da baldada de tolice na cabeça. Agora, sinto-me de alma lavada. Porque é mesmo bom ficar livre das ilusões.

Vixe, esqueci-me de um item:

Número 6: sim, ainda há muita ilusão presa no bueiro.

tempo tempo tempo tempo

Naquele tempo, eu andava pelo mundo a tomar cervejas, a exercitar o amargo, a vibrar risos metálicos.
Alucinada, agarrava-me a toda qualquer potência de afinidade que me parecia mais ou menos nítida.
Naquele tempo, eu não usava óculos.
Naquele tempo, que é agora, eu já amei porque soube da possibilidade.
Parece confusa esta simplicidade?: reencontrar o amor que não se conhece.
Afirmo.
A separação antes do beijo...
A euforia diluída antes da festa...
Tudo possível.
Afirmo.
Veja: estou selando nossa separação, porque já basta de amor por hoje.
Mas ainda assim, cantarolo, na esperança de estratégia comunicativa de efeito: "num outro tipo de vínculo." Você conhece a canção, não?
Eu disse num outro tipo de vínculo. Atente para o enigma: veja o contrário.
Eu aguardo sua inteligência pois estou com muita sede.

22 de out. de 2009

as panelas azuis da minha avó

Primeiro eu escolhi levar para mim um conjunto de panelas azuis. Era azul clarinho. Minha avó havia morrido há três anos e pela primeira vez eu visitava sua antiga casa - e não mais sua ausência.
Então eu lembrei subitamente daquelas panelinhas que até pareciam de brinquedo. A única diferença é que eu estava de adulto naquele momento.
As panelas: o azul e as florzinhas. Um leve enferrujado. Ferrugem leve. Panelas de ferro.
Ferro pintado de azul. Eta, lindeza!
- Elas estão como novas, há mais de 100 anos - este era o orgulho de minha avó: mostrá-las junto a esta frase. Ritual repetido por todos os anos de minha infância, em julhos de jabuticaba temporona ou no dezembro das mangueiras.
Para levá-las, eu tinha uma condição minha: desocupar alguma prateleira da minha casa empilhada. Pensei na estante da sala.
- Mas panela enfeita é cozinha.
Na sala. Tiraria os cds e colocaria em alguma caixa. No lugar, as panelas se enfileirariam, em ordem crescente (mas isto, como se sabe, é questão de ângulo). O ambiente, então mais azul, engrandeceria os olhos. Plano perfeito. Decidido.
No meio das panelas, uma mantegueira. De ferro azul. Clarinho. As mesmas florzinhas vermelhas. Coisa antiga e preciosa, escondida no gavetão dos tesouros.
- Mas elas estão como novas há quase 100 anos.
Sempre tive uma vergonha enorme desta frase, dita com tanto orgulho por minha vó.
Sentia vergonha deste novo tão novo. Nada pode ficar intocável por 100 anos.
- Aposto que se estivesse na sua casa, já não sobraria mais nada: poeira e ferrugem forte.
- Sim, na minha casa há poeira e ferrugem forte - pensei, levantando queixo e olhar.
Conclui, portanto, que aquele era mesmo o lugar perfeito para as panelas. Minha casa.
Não falei com ninguém da família. As panelas azuis eram minhas por direito. Toda a poeira e ferrugem que eu possuía legitimavam a posse daqueles objetos.
- Basta de proteção. Chega de isolamento. Intocabilidade malígna.
Levei as panelas com segurança e direito. Ninguém perceberia a ausência porque ninguém se dava pela presença. Contei com a ajuda de um amigo e sua força de homem para abrir a gaveta pesada. Seria nosso segredo: eu levaria as panelas no fundo da minha mala e ninguém poderia impedir.
Depois da mudança, já no primeiro dia de estadia, as panelas tremeram de susto. Antes de ir para a prateleira, suportaram exuberante comida. Nunca haviam experimentado aquelas iguarias. Jantar magnifíco.
Aí, a prateleira - até um novo jantar.
Curiosamente, depois de 6 meses, as panelas começaram a adquirir uma nova textura e colorido. O azul vibrou, o metal se acendeu e, até hoje, eu teria muita felicidade das panelinhas se não fosse eu ter acordado.
E lembrado que minha avó nunca teve panelinhas azuis. Que minha avó nunca guardou este tipo de utensílio no gavetão. Que os cds continuariam no mesmo lugar da prateleira.
Ou talvez não.

18 de set. de 2009

ando muito completo de vazios

"Achava que a partir de ser inseto o homem poderia entender melhor a metafísica."

"Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam a ignorância."

"Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros."

"Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas."

"Lugar sem comportamento é o coração.
Ando em vias de ser compartilhado.
Ajeito as nuvens no olho."

Manoel de Barros. O livro das ignorãças.

19 de jun. de 2009

Diga que eu vou me casar

Quero levar minha noiva
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar
com porta azul piquininha
pintada a lapis de cor

Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem bem

[...]

Quero uma rede bordada
com ervas de espalhar cheiroso
e um tapetinho titinho
de penas de irapuru

Haverá muita festa
durante sete luas sete sóis

(Cobra Norato, Raul Bopp)

11 de jun. de 2009

Eu também sempre me pergunto...

Por que choram tanto as nuvens
e cada vez são mais alegres?

As lágrimas que não se choram
esperam em pequenos lagos?

Quem gritou de alegria
ao nascer a cor azul?

Contaram o ouro que tem
o território do milho?

De que ri a melancia
quando a estão assassinando?

Como repartem o sol
na laranjeira as laranjas?

O 4 é 4 para todos?
São iguais todos os setes?

A quem posso perguntar
o que fazer neste mundo?

Ou não será a vida um peixe
preparado para ser pássaro?

Se as moscas fabricam mel
ofenderão as abelhas?

Onde vão as coisas dos sonhos?
Vão para os sonhos dos outros?

Pablo Neruda. Livro das perguntas (fragmentos).

10 de jun. de 2009

A ema e meu amor


Havia uma raposa e seus dentes terríveis. Um súcubo saído de uma estátua antiga que agora se arvorava contra mim.
Só eu poderia vencê-la, mas eram tantas ardilosidades... Tantos dentes maiores que a boca... Que eu me apavorei. E disse: basta! Com ferros na mão, tentei interromper a ferocidade de suas mandíbulas, não cheguei perto, apenas – distancia de um cabo – estoquei, estocadas firmes, até chegar em sua goela. Era tudo inútil e temporário, a qualquer momento ela poderia triturar aqueles ferros e sair ilesa, cheia de saliva. Muito medo eu sentia daquele que era todo fera. Quase não via raposa, e, curiosamente, não via o branco, mas o vermelho além dos dentes: língua, sangue, desejo.
Num passe de mágica, eu venci. Sumiram raposa, boca e ferros.
E de repente alguém disse: – Não respire. Eu ri.
– Não respire. Foi ríspida comigo a voz, e eu vi que era sério. Fiz uma concessão à vida: respiraria escondida. Ninguém veria a desobediência, nenhum animal feroz poderia farejar a minha presença naquela selva – pois estávamos em uma selva.
O perigo era dos instintos, qualquer movimento (fosse o da respiração) faria ruído e dispersaria cheiros, e os leões e hienas e tantos outros bichos desejavam demais a minha carne branca e rosa. Não respirei. Ou, antes, respirei apenas o que era permitido, um mínimo de ar. Proteção.
Vi que precisava muito menos de ar do que eu pensava, a vida não estava nos pulmões naquele momento das feras. Medi os palmos de meu diafragma com os olhos fechados.
Mas o perigo se matinha, sobretudo. Havia o perigo das aves. Sim das aves. Como a avestruz – na verdade era uma Ema.
– Cuidado com a Ema.
Olhei bem. Os animais solenes, enfileirados, num alto da planície – ah, era selva. E os animais não ameaçavam ninguém e até provocavam a minha simpatia.
– Cuidado com a ema.
Argumentei:
– Mas eu já venci a raposa. E fiquei sem respirar. O que uma ema pode me fazer?
Loucura... a ema parecia ser mesmo o animal mais perigoso de todos. Todos sabiam. Eu não.
Franzi a testa.
– Como?
– Você não está vendo. Basta vê-las, lá. Me disse o homem, porta-voz do pensamento da multidão que me acompanhava.
Agora, todos duvidavam da minha capacidade de guia. Eu venci a raposa, estava certo, mas desconhecia o perigo da ema. Eu era alvo de piedade e ridicularização. Quase podia escutar os risos, ririam se não fosse a floresta e sua ordem de silêncio.
– Veja por outro lado – me disseram repletos de dó.
Eu continuava com a testa franzida, teimando em não ver perigos.
– Veja no fundo. Veja as penas do rabo.
– Qual é o perigo? Fazia esforço desesperado para me lembrar das aulas de biologia (nenhum livro me avisava para ter cuidado com emas.) Ema... porque elas nos perseguiriam? Não temos nada para elas... nem contra elas...
Não aguentando de dó, como se conversasse com uma filha, o porta-voz explicou:
– Seu corpo é capaz de nos empurrar com mais força que um elefante.
Nenhum professor havia me dito isso. Mas me parecia verdade. O mundo animal é sempre tão espantoso – lembrei dos documentários da TV.
– A queda é mais destrutiva que o golpe de um leão.
Era tudo claro demais para ser mentira. Parecia que eu sempre soubera daquelas verdades ocultadas até ali, pois era tudo tão familiar.
– Estranho.
Acreditei e obedeci, passei a léguas da ema. E me afastei de todos e de suas revelações incômodas. Precisava seguir sozinha a partir dali. E respirar todo o ar pleno que me fosse destinado.
Preocupei-me mais uma vez com o perigo. A ignorância sobre os perigos do mundo.
– Que mundo é este que não nos informa sobre a que estamos sujeitos em um encontro com uma ema? Pior que um elefante... Pior que um leão... Devia ser uma obrigação do governo.
Disse com o peso das idiotices adultas.
Olhei para todos com expressão séria, concentrada. Que ficasse claro que eu sabia – agora sim – dos perigos da natureza. Que não rissem. Que não rissem nunca mais. Que não rissem nem escondido.
Afastei-me. A multidão me olhava, também séria. Era tudo sério demais. Tratava-se da sobrevivência. Mas eles balançavam a cabeça, vislumbraram (eu não) que eu ainda não havia entendido por inteiro aquela ema. Acreditei no perigo e me afastei por obediência às vozes, que me pareceram sábias, mas eu ainda não havia visto o outro ângulo. O outro lado que sempre há, em tudo. Só eu não via. Era preocupante.
Não havia compreendido o perigoso ame, que havia naquela ema. Pior que um leão. Mais forte que um elefante.

20 de mai. de 2009

Senhorita Rita anda descobrindo o que quer


Senhorita Rita tem 21 anos, e sabe que a soma desses dois números é 3, estágio em que se encontra, num total de 7. Chegar ao 7 ela sabe que é difícil, dependeria de uma vida que é além de sua existência.
Muita sabedoria, sabedoria que talvez não caiba numa linha de vida.
Já fazem 5 anos que Senhorita Rita tem 21. Amanhã comemoraremos seu aniversário, com bolo de cereja, cherry. Se bem que há sempre os maracujares e suas flores. E os manjares e seus brancos. Mas isso é amanhã. Só amanhã.
Não se sabe ainda a idade que Rita fará. Esperemos a lua da madrugada...
Mas ela anda descobrindo o que quer. E, pasmem, não se trata de massa, de nenhum gênero ou tamanho.
Mas ela quer.
E eu digo que é um carinho que seja feito como afago no ponto exato de suas têmporas, quando ali já é espaço dos cabelos. Na linha do limite. Sim, isso ela quer muito, pois parece que só essa exatidão do afago acalmará o que se passa no cérebro, às vezes nomeado como alma.
Ela quer um sumidouro ouro ouro ouro.
Ela quer uma risada branda, despertada do ponto mais abaixo do esôfago pelos dons da maravilha.
São seus tesouros.
Ela quer olhar plácido.
Ela quer um silêncio repleto.
Ela quer músculos descontraídos em seus ombros.
Percebem a transição?
Já estamos quase no quarto, falo dos estágios.
Sem consultar horóscopo nenhum ela sabe que sua cor é rosa-alaranjado. E faz questão de usar vestidos azuis, para a harmonia das cores.
E há mesmo harmonia das cores, pois algo resplandece em seus sonhos, e uma memória infinita lhe mostra que a sua memória também tem um cantinho neste espaço de infinitude.
Um cantinho no espaço da infinitude lhe faz feliz e amena. Não há mais grandes olhos cheios de um coração devorador de infinitos. É só um canto, espacinho dos olhos onde pode muito bem caber uma lágrima. Oh, que infinitos podem refletir uma lágrima. Dizem isso por aí, mas o reflexo não cabe nos olhos, é importante saber, ele sai, porque é luz.
Também alheia ao zodíaco, ela sabe da sua pedra turquesa, sorte de seu signo. E por isso construiu, sozinha, um sobrado de ametistas. Demorou 9 anos e ficou lindo, fui ver a obra ontem.
Senhorita Rita está feliz, hoje, vésperas de seu aniversário. Faz um ano que não sentia isso.
Além disso, tudo está indo tão bem e tranqüilo que depois de amanhã ela terá um encontro amoroso - mas não se sabe, ainda, se há amor.
Ela sabe muito bem que se houver amor, o amado lhe entregará, em um papelzinho, três gramas de ouro. E se houver amor, ela deverá soprar o pó de brilhos para que eles alcancem as estrelas.
Se não houver amor, esta senhorita se prepara para esperar mais um ano, ou dezoito.
Não tenham pena. Não é o caso: Não se trata de uma espera de esposas marítimas, helenas, penélopes. Enquanto espera, há as luzes repletas de cidade, seus néons e abismo. Distrações. Mas é espera, irmã dos bordados longos e dos cabelos de crescimento constante.
É isso: hoje, no dia de sua transformação, ela espera pelo momento seguinte como quem poderia esperar os séculos. Feliz feliz com seus vazios lindos.
Quanto a mim, ao terminar essa escrita, percebo com muita clareza que há pedras de-cor-rosa em minha mão. São falsas e de plástico, bem como Rita, mas estão incrustadas.
Seriam glóbulos de sangue dissolvidos na brancura que é Rita para mim?
Sabe-se lá.

4 de mai. de 2009

Seção dos amores imaginários ou concretos demais

Nos devaneios noturnos da senhorita rita, surgem muitos – muitos – seres de matéria de nuvem, translúcidos, transparentes, mas que possuem mãos robustas, às vezes peludas. Alguns têm barba por fazer, outros usam roupas passadas pela mãe, alguns são bem sujos. São invisíveis e encorpados. Senhorita rita permite que tomem seu corpo e ruborizem sua pele. Sinto febre. Por ela. São mais pesadelos. Ela fica calada quando chegam. Aceita sua presença. Agora vou transcrever as cartas que rita me mandou, dizendo o que pensa de cada um deles. Caso algum amante tenha acesso a essas cartas (destinadas a eles!), é permitido que revidem. Serei sincera em minha transcrição. Ela enviou as cartas para mim porque não chegou a pegar o endereço de nenhum desses amantes – são os tempos modernos.
Aí vão as cartas:


Querido Paul.

Você pegou na minha perna e ficou com olhar parado, ao longe. Como se nada tivesse acontecido. Suspendeu minha saia. Até o joelho. Enquanto a conversa ia chata, sobre a guerra. Não gostei. Tchau. Senhorita Rita.



Querido, querido, querido.

Adoro o seu rock’n’roll. Você me pega na cintura num swing bem heavy... e é tão sweet quando me abraça depois de tudo. Sua roupa preta me lembra demais as noites em que olhamos para a lua, deitados em sua cama – aquela que combina tanto comigo, sabe? O cobertor vermelho, de pelúcia felpuda, sobre o lençol velho (o mesmo que já recebeu as incontáveis mulheres que você fingiu amar – com o consentimento e aprovação de todas elas) não sai de minha memória. Eu te amo por causa de seu cobertor vermelho. Lindo, carinhoso, confiante, talentoso, educado, charmoso: um homem que deve ser deixado em paz. Tenho que me livrar bem rápido de você. E eu olharei para a frente, prometo. Mas antes eu queria, mais uma vez, a profundidade de seus beijos. Só mais uma vez. E depois fugirei de sua lista de carolzinhas, alicezinhas, natalinhas... Porque eu me recuso a fazer parte dessa listinha amorosa que você nem se dá ao trabalho de consultar – pois há sempre carne fresca no pedaço. Como eu. Então, vamos ao tal do beijo. Passo aí na sua casa? Ou você vem pra minha? Depois tocamos em frente. Beijos.



Senhor Barbichas Macias.

O senhor nem imagina a sensação que foi me despedir de você. Você não precisava me abraçar, nem somos íntimos nem nada, mas você me abraçou e eu pude sentir sua barba em minha pele. Não devias ter feito isso, mas agora que fez vou confessar minha ignorância: Não sabia que barba ficava tão macia, assim grande. Achei bonito. Gostaria muito de te abraçar de novo, por um tempo um pouco maior. Seria possível? Me ligue.



Max,

nosso encontro foi formidável, você me abraçou forte, sem que eu tivesse tempo para dizer não. Gostei de ficar calada, sem reação. Assim deve ser da próxima vez (não se esqueça). Obrigada por me deixar sem voz.



Japonês loiro,

tenho que te confessar: o seu maior atributo é o fato de que em breve irás para o Japão. Me desculpe a felicidade por saber-te tão longe em tão breve. É muito bom saber que eu talvez não te veja nunca mais, é que eu gostei demais de tocar sua pele áspera e sei que deve ser assim para ser bom: um toque único e efêmero. Outro dia saí andando por perto de onde você mora para, quem sabe, te encontrar casualmente, antes que você se vá para o outro lado do mundo. Você parece não ter idéias para conversar comigo, pode conversar, bobo! Minha bela boca não morde como seu desejo pensa. Vou te ajudar: deixarei o carro em casa para você me oferecer uma carona. Não se esqueça de oferecer, ouviu? Com você, eu gostaria de sentir lábios fortes em meu rosto. Beijos firmes. E uma mão firme capaz de me enlaçar até à cama. OBS: Eu também já intui sua delicadeza, não se preocupe.



Venâncio.

Não posso te chamar de querido. Quero te dizer que cansei de ti. Você é muito preconceituoso e eu tive medo de que saísse espalhando por aí os meus sonhos. Não apareça de noite.



Oi, querido.

Você me olha tanto... e tem um ar bastante seguro de si. Por que você me olha? Esperas algum código de meu olhar? Eu sinto muito, mas não sei dar bola, já vou lhe avisando. Deixo toda a responsabilidade para você que nasceu homem. Toda. Essa é a minha forma de dizer que estou interessada. Entendeu? Se você perguntar se eu quero, direi que não. Se você me convidar para sair, direi que não. O caso exige atitude drástica. Se vire, é sua função de homem, eu não tenho dó. Além disso, não poderíamos nunca sair, convide-me para ir ao cinema e teremos um problema, pois jamais chegaremos a um consenso sobre algum filme, tenho certeza disso. Faz parte de nossas naturezas sermos opostos. Mesmo assim ficarei esperando sua atitude. Confio demais em você apesar de tudo, sei, por exemplo que você não me mataria, mesmo com toda a sua força brutamonte. Poderíamos ficar sozinhos, eu acho. Você me entenderia mal? Acho que sim. Devo dizer que nunca fiz isso, o que é mentira, pois há séculos venho planejando a ousadia. O fato é que fiquei totalmente sem ação quando você me segurou pelo braço, sem delicadeza nenhuma (como eu gosto) para passar por onde eu estava. E nem olhou para trás. Fiquei estupefata. E seduzida. Mas não sei fazer mais nada além disso. Muitos beijos, Tenho vergonha de me identificar.



Áureo.

Adoro sua tecnologia. Tão sofisticada. Adoro quando você fala palavras estrangeiras: shitake, curry, new york... tão ridículo e lindo que eu suspiro: ui, ui! Além disso, seu cheirinho de sabão em pó me lembra roupa lavada por mãe, é uma delícia. Puro confort. Sua feminilidade me assusta. É bonito. É agradável estar comigo mesmo em você. E eu, que sempre gostei de amor aos encontrões, de mãos que tomam 1,70m de mim com um dedo, vou ter que mudar de tática. Você está saindo caro. Sua fragilidade excitante está fazendo de mim mais macho. Vou ter que aprender, já comecei as aulas de rispidez, de objetividade e de não-devaneio. Vou te levar para a cama e falar: "já". Daí, descanso. Lembra que eu te disse que eras o primeiro? Mentira. Tenho muitos amantes, não cabem em meus dedos. Guardo lembrancinhas de cada um deles. De você, eu quero duas gotas de sangue embrulhadas em papel alvo. Sei que você fará um embrulho bonito, você é dos laços. Ah, quero um solo de sax também. Envie tudo para minha casa, você tem o endereço.



Cícero, Cícero, Cícero.

Você é dos meus... pena que é cego. Você não viu que eu olhava seus traços delineados pela camisa? Era a resposta ao que me perguntastes com os olhos. Perguntastes com os olhos, respondi com os olhos, mas você virou as costas na hora, burro! Agora não há mais jeito, você vai ter que passar pelo constrangimento de dizer, com todas as letras e sons, que me deseja e que quer me levar para uma casinha confortável nas montanhas, longe da civilização e perto do romantismo. Comece assim: “eu gosto de você porque você é linda”. E eu responderei: “tá bom, eu concordo. Pode me levar.” Vai ser ótimo porque você é adulto e eu estou fingindo que sou também. Aí a gente brinca e vai embora depois.



Amantes.

Eu facilito tanto a vida de vocês, dou dicas para me conquistar. Mereço um pouco mais de consideração. Estou estipulando: quero assistir a um filme no vídeo pelo menos uma vez por semana (filme com abraço), quero que façam suas especialidades culinárias para mim (uma vez basta), quero viajar para um lugar frio e outro quente (ao longo do ano). Mandem-me também uma mensagem erótica por dia. Pode ser por carta ou computador. Ou então coloquem debaixo da porta. Combinado então. Beijos.



João, brando João,

penso em fazer uma maldade contigo. Fique longe de mim. Vou te seduzir até te arrasar. Sou um perigo. Você tem estômago para isso? Aprendeste como curar alto amor na faculdade de medicina? Acho que não. Tenho pena e gozo com isso, você tão experiente... está prestes a ser enganado por uma menininha... eu não devia te avisar, você merece minha ironia porque é bobo demais. Terás apenas um momento de alívio: deixarei que toques belas pernas brancas. Fuja enquanto é tempo... Até mais, se não fores tão bobo. Até nunca, se fores sensato.



Modelito.

Eu não quero nada contigo! Foi só a lua e a cachaça que me fizeram olhar para ti. Você é lindo e certo. E isso basta para me enojar. Quem olharia para você? Apenas moças de unhas bem feitas e cabelo de salão. Eu recuso. Não me esqueça. Sofra um pouco para amenizar sua beleza correta. Vai ser bom para você. Pra mim, foi péssimo. (ninguém mandou você vir aqui, eu disse que seria cruel. Estou em meus lençóis. Procure os seus).



Hello, Jonny.

Te vi no vídeo. Distante, distante, tão hollywood. Tão estrela quanto suor. Você ia gostar de me conhecer, essa é a única hipótese para ficarmos juntos, você gostar do que ainda não tem. Você tem mulheres, mas nenhuma delas tão absolutamente cotidiana como eu. O cotidiano te atrai? Responda que sim, que sim, que sim... o problema é que eu não falo inglês. Ficarmos juntos pode ser por um dia. Aí eu vou ficar pensando que você não vai me esquecer nunca mais... enquanto você me esquece rápido, rápido. “Mas você não me esquecerá”, teimarei eu. Ai que mentira, ai que boa. Mas se quiser um pãozinho com manteiga embrulhado no papel toalha, eu te mando com carinho. Tenho certeza de que os tapete vermelhos sangram um pouco sua paz.


Honey,

achei seu sabor amargo. Digamos que você é como um chá de boldo ou carqueja, só que sem os efeitos benéficos de saúde. Só o sabor ruim. Ruim. Nada bom. Será que você não se perguntou por que eu não fui de carro ao nosso encontro? Por bondade. Pois sei que, para homens como você, o carro é um atributo. No caso, é o seu único atributo. Pena que este não me interessa. Este foi seu erro, você me confundiu com alguém que você conhecia – talvez dos lugarinhos bem frequentados por você e por toda a “tradicional família mineira”. Sua falta de carinho, sua masculinidadezinha previsível (demonstrada apenas – eu grifo “o apenas” – em jogos de tv e barba malfeita) é cômica. Eu rio. Até chorar. Senti-me diante de um estereótipo desses que a TV fabrica – eu nunca tinha visto um ao vivo... foi até emocionante, eu diria. Entristeço-me pelas belas-bobas, de esmalte lilás e pele plena, que ainda aceitarão a cafajestagem rude, fingidamente carinhosa, em jantares pagos com cartão visa. E por você, que se sentirá exultante com tão pouco. Enraiveço-me porque nunca fiz aulas de boxe e não tenho força nem técnica suficientes para lhe dar alguns socos estratégicos – apenas como paga pelas frases idiotas que ouvi enquanto teimava em encontrar algo de interessante em ti e como forma de sacolejar algo de vivo que talvez teime em existir em alguma camada mais profunda de você. Falei em soco, mas não te quero mal. Até te desejo boa sorte! E felicidades, se possível. Desejo de todo o coração que você se apaixone e sofra, porque “só é verdadeiramente vivo quem já sofreu”. Despeço-me com esta carta para que não penses que sou má. Pois minhas intenções para contigo eram as melhores... Sinceras não-saudades. E um beijo (para não dizeres que nunca te agarrei!).

De passagem...

– você quer dirigir?
– não, prefiro ser passageira.

Isso é lá com Santo Antônio?

Frases retiradas de revistas femininas das décadas de 50 e 60:
"Não se deve irritar o homem com ciúmes e dúvidas. (Jornal das Moças,1957)"
"Se desconfiar da infidelidade do marido, a esposa deve redobrar seu carinho e provas de afeto, sem questioná-lo". (Revista Claudia, 1962)
"A desordem em um banheiro desperta no marido a vontade de ir tomar banho fora de casa." (Jornal das Moças, 1965)
"A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas, servindo-lhe uma cerveja bem gelada. Nada de incomodá-lo com serviços ou notícias domésticas". (Jornal das Moças, 1959)
"A mulher deve estar ciente que dificilmente um homem pode perdoar uma mulher por não ter resistido às experiências pré-núpciais, mostrando que era perfeita e única, exatamente como ele a idealizara". (Revista Claudia,1962)
"Mesmo que um homem consiga divertir-se com sua namorada ou noiva, na verdade ele não irá gostar de ver que ela cedeu." (Revista Querida,1954)
"O noivado longo é um perigo, mas nunca sugira o matrimônio. ELE é quem decide - sempre". (Revista Querida, 1953)
"Sempre que o homem sair com os amigos e voltar tarde da noite, espere-o linda, cheirosa e dócil" (Jornal das Moças, 1958)
"É fundamental manter sempre a aparência impecável diante do marido".(Jornal das Moças, 1957)

28 de abr. de 2009

o pulso ainda pulsa

Maximiliano.
É verdade que não posso esconder sua identidade nesse maximiliano. E olha que tentei alcançar o mínimo. É-me difícil achar entrelinhas, pelo menos assim, no meio de seu público. Logo eu que gosto tanto de sutilezas... Peço desculpas pelo que for grosseiro demais, mas sei que achará tudo uma delicadeza só.
De você, só conheço a superfície, pois você já se acostumou à pele dos papéis fotográficos.
Te conheci no cinema, numa quinta já sexta, madrugada em que não havia mais filmes, e logo obtive de ti um olhar, muitos olhares, enquanto te via no meio de vozes - mais sussuros - de elogios. Você se apresentou a mim, e eu continuei sem conhecê-lo. Esbarrei meu corpo no seu, porque havia multidão e porque eu usava meias vermelhas, o que me garantia uma certa ousadia, embora emprestada.
Você pegou na minha mão, eu retive a sua, e foi tudo muito efêmero. Aí acabou meu estoque de ousadia (tenho gastado-a muito por aí, um desperdício).
Desde então eu desejei muito que o efêmero durasse ao menos dois dias, mas efêmero que se preze ignora os bilhões de anos de vida das estrelas.
Penso profundo no meu punho ali... os pulos de minha dança... as pulseiras... as pinturas... seu punho... nossos pulsos... por quantos segundos bate um coração em uma noite? É tudo mesmo muito volátil.
O seu toque... haveria outras texturas? Quais são as profundidades possíveis?
Bão... encurtando a prosa...
Ofereço uma brevidade - tradicional quitude mineiro. É isso.
E peço às montanhas do meu horizonte que não barrem a minha correspondência contigo, que pertence a outros mares, recifes, corais.
Um beijo, tão pulsante quanto você suportar.

9 de abr. de 2009

Amantes invisíveis - Carta INÉDITA

Transcrevo abaixo mais uma carta da senhorita rita. Ela acabou de escrever e pediu que eu a colocasse aqui. Ela não entende de computadores (a verdade é que a informática não combina com suas unhas de esmalte fresquíssimo, sabor melancia).
Rodrigo, digo, Diguinho.
Sinto tanta falta de seu rosto anguloso... É impressionante como você fica bonito no ângulo do beijo - confesso, eu abri os olhos. E depois tive que abrir de novo, para reparar bem sua pele, o vermelho dos lábios e os cílios, tudo bem de perto. Tão bom.
Enquanto isso, a sua mão...
Ai, que eu estremeço. Sua mão. Sua mão é... bonita demais. E é limpa, dá até gosto.
A sua mão tocou os meus ombros com a força suave de um homem que gosta de pele. Ai que mão bonita, meu Deus. Eu poderia ficar olhando para ela por três horas e depois combiná-la, mais uma vez, com a maçã de meu rosto, em perfeito encaixe.
Tão bom. Eu queria isso.
Sei tão pouco de ti, não é mesmo? Só posso dizer que elas, as mãos, desenharam sobre a superfície de minha pele algo muito agradável (tanto que eu te mandei um arrepio, em agradecimento, lembra?). E foi só.
Viu como eu sei me comportar? Nem te convidei para uma xícara de café...
Bem... Vamos ao que interessa.
Esse prêambulo é para dizer que você tem belezas, mas o que eu queria mesmo era acabar com a sua raça. Sim. Você ouviu direito.
E aqui começa a verdadeira carta.
Eu sei que você está enganando aquela moça, e isso eu não posso suportar. Um homem com suas mãos não devia fazer algo assim... é sujeira. Deixe esse tipo de atitude para os das mãos sebentas. Você não.
Naquela tarde tropical, quando te vi com Ana, pude palpar o tanto que ela gosta de você. E, mesmo assim, você andava me beijando pelas vésperas... Você não tem vergonha? As mulheres têm muito medo de assustar os homens com suas poeticidades e se calam, depois sofrem, também caladas, quando escutam "Ó, você confundiu as coisas". Pois eu te digo: não há confusão nenhuma... Ou não há beijos, carinhos, gentilezas, intimidade crescente?
Resolva isso, por favor. Só assim eu poderei voltar a te amar: namore a Ana e mostre que você tem decência. Poderemos nos casar quando este seu relacionamento acabar, enquanto isso vou me divertindo por aí. Sou paciente.
Confio em sua nobreza de caráter. Minha intuição não pode estar errada.
E boa sorte, meu amor!!!