30 de abr. de 2010

sonho do beijo chocho

Meu amigo me conta uma aventura que tivera: ele resolveu pichar uma casa, de um homem rico. À medida que ele contava, eu visualizava. A casa era na periferia: longe, alta, de difícil acesso. Não era muito sofisticada. Ele foi de helicóptero, conseguiu com um amigo que trabalhava com isso, foi difícil chegar na parte a ser pichada. Claro que os donos da casa ouviram o barulho do helicóptero e o viram também. Aí ele escreveu algo assim: estou ali atrás das árvores escrevendo poesia. E ficou mesmo atrás das árvores e a polícia quase o pegou. Achei meio engraçado e sem sentido.

Depois estávamos no banco de trás de um carro, sentados muito perto. O braço dele meio que me abraçava. Eu estava tão perto que resolvi espontaneamente dar um beijo, algo que, no passado, eu quis fazer. Eu tinha me esquecido desta minha vontade antiga e, de repente, lembrei.

Nunca teria coragem de beijar um homem, assim, por minha iniciativa. Mas ali era realmente muito natural que eu fizesse isso. Pensei que meu beijo ia pegá-lo de surpresa, mas meus lábios foram em câmara lenta e ele foi narrando, num tom divertido, que eu não suponha nele:

– Será que esses lábios que se aproximam me darão um beijo?

Fiquei meio sem graça mas não vi saída senão continuar. Eu fui chegando mais perto e ele, no mesmo tom:

– Mais um centímetro, mais um centímetro... Parece um beijo. Aproximam-se ainda mais. Não acredito, será um beijo, um beijo, ah!

Eu encostei os lábios quase nos lábios dele. E foi um beijo muito ruim, não gostei da textura da pele. Beijei de novo, na boca. E foi pior ainda, sem graça, pele mesmo estranha. Ele me abraçou e beijou também, num gesto que transmitia uma mensagem: "somos íntimos agora". E eu pensei: "o que eu vou fazer com isso?"

Avaliei que talvez melhorasse depois, mas no fundo sabia que não. Com ele, seria isso: lábios sem vida, falta de entendimento das peles, um beijo chocho. Fiquei desapontada.


27 de abr. de 2010

POW

por causa dos homens
meus semelhantes
tenho desenvolvido medos grandes

muito medo por exemplo
de "saudade" e "poesia"

Que pensarão de mim se souberem que eu sinto isso de afetos?
Quantos matarei ao atirar p-o-w-e-s-i-a?
Quanto de ti derrubaria, se lhe dissesse esse escândalo?

Sob as obras de pedra e barro

"ensina-me a inocência -
olhar o céu e dizer:
céu
olhar a noite e dizer:
noite
como no tempo da criação

ensina-me a procurar nas tardes
a grande bola de fogo
ensina-me a procurar nas noites
o traço fino da lua
o traço firme da lua -"
Sônia Queiroz

24 de abr. de 2010

Senhor da Morte

Eu fui visitar um homem, um senhor. E depois fiquei sabendo que ele era o Senhor da Morte. Junto dele havia uma governanta, de roupa séria, como convém à governanta do Senhor da Morte. Era uma senhora magra, de colo ossudo, de cabelos grisalhos e ensebados. O Senhor da Morte era muito ocupado e não me deu muita atenção, ele se preparava para receber uns visitantes. A governanta ficou encarregada de me recepcionar e mostrar o castelo. Ah, o lugar era como um castelo, casa antiga, móveis antigos, cheiro antigo. Soube que o homem era o Senhor da Morte porque por segundos vi que ele sugava almas com os olhos. Algumas pessoas que entraram na sala tiveram suas almas sugadas. Mas eu não tive medo (pelo menos não muito), porque eu fui ali de livre e espontânea vontade. Eu não havia sido convocada pela morte.
A governanta começou a me mostrar os aposentos, eu queria conhecer aquele lugar, por algum motivo desconhecido para mim agora. Era simpática. E falava baixo.
De repente, a casa começou a ficar cheia, eu sabia que ficaria. Quando cheguei, senti a multidão iminente, mesmo no vazio. Além disso, eu não era uma visitante qualquer, entrei antes do horário. Tinha um certo acesso e era bem vinda, por algum motivo. Mas agora a casa estava cheia. E eu observava a todos.
Passamos por um lugar onde havia um altar e fotografias de pessoas mortas, homenagens.
Uma mulher madura, de vestido esvoaçante e traços firmes. De olhos tristes e pesados, apontou uma fotografia e disse:
– Nery, não é?
Era a governanta. Fiquei em silêncio, olhando para Nery, que não respondeu e andava dura e levemente ofegante, com os olhos fixos num ponto da parede, numa postura de quem esconde um estado de nervosismo. Quando chegamos ao pátio, eu perguntei:
– Era você, Nery? Você está morta?
Ela respondeu com um levíssimo – imperceptível quase – choro na voz:
– Eu não sei. Não se pode ter certeza.
Minha calma e capacidade de ver que aquela governanta sofria, mesmo mantendo a postura neutra que convém à governanta do Senhor da Morte, me fez saber que eu era muito importante nessa história. A governanta precisava de mim para entender o que era vivo e o que era morto.
– E eu, Nery? Eu estou morta? Por que eu estou aqui, nessa caminhada, junto com os mortos? Me diga, porque eu não tenho certeza...
– Ninguém tem (palavras contidas, o mesmo levíssimo choro imperceptível). Vamos saber agora. Quem sai, está vivo.
Ela não disse, mas eu entendi. Os visitantes eram todos mortos, e seguiam, numa procissão desordenada, para a janela dos fundos, onde talvez houvesse uma saída, para o lado dos vivos. Pela porta, a mesma por onde entraram, eles não podiam sair, simplesmente não havia como passar (como se houvesse um campo de força – daqueles dos desenhos animados e filmes de herois – que impedia a passagem). Restava a janela. Conseguiriam? Não. E Nery? Também não. Eu já sabia. (Por que me foram dadas estas certezas súbitas?).
Mas eu tinha chance, eu era a única que tinha. A não ser que estivesse morta, realmente eu não sabia... Isso tornava a caminhada até a janela cheia de suspense. Nery precisava de mim: me ver saindo era a comprovação da existência de lá de fora.
Andávamos pelo castelo e eu, agora, tinha a certeza de que, afinal, eu não estava ali à toa.

23 de abr. de 2010

sereia

22 de abr. de 2010

pombinha

Vi hoje um pombo sendo atingido por uma moto. Bem na minha frente na avenida com suas alças, curvas, desvios. As penas voaram. Bem na minha frente. O pombo voou ferido e cambaleante, e eu conclui:

todo pombo será ferido.


Assustei porque,

nessa hora, eu estava bem semelhante a um pombo ferido.

E agora, eu não sou mais pombo.

21 de abr. de 2010

dúvida

"seja natural"
será que para ser como eu sou
eu não deveria primeiro saber quem eu sou?

será que para saber com qual roupa ir
não seria melhor me despir antes?

será que antes do perfume, do esmalte e do batom
há mesmo uma pele, uma unha e um lábio?

qual percentagem de vazio me preenche as carnes?

óculos do amor


Estudos sobre o romantismo - parte IV
(ou melhor, contra o romantismo. certo romantismo.)

"Wilhelm, que seria do nosso coração em um mundo inteiro sem amor? O mesmo que uma lanterna mágica apagada! Assim que se põe lá uma lâmpada, imagens de todas as cores surgem na tela branca... E mesmo se fosse apenas isso – fantasmas –, ainda assim continuará fazendo a nossa felicidade, sempre que nos postarmos diante deles, como crianças extasiadas..."
(GOETHE. Os sofrimentos do Jovem Werther).




rosarot. from kiinanimation on Vimeo.
com agradecimentos a Vários um (www.quilombo.blogsome.com).

"[...] colocar o vínculo amoroso como o componente crucial para a felicidade humana tem sido fonte de frustrações e de sofrimento. O amor tornou-se o problema do qual se fala à exaustão no divã, sobretudo atualmente: os males do amor, da impossibilidade de amar e ser amado ou de construir relações amorosas estáveis tornaram-se o pivô de boa parte dos estados depressivos atuais e das demandas de psicanálise. Para alguns autores contemporâneos a presença de resquícios dos ideais românticos nos relacionamentos amorosos é umas das causas dos desencontros afetivos do século XXI. Assim como Freud deparou-se na clínica com exigências amorosas impossíveis de se satisfazer, ou seja, as imposições românticas de felicidade ligada a uma completude no amor, também hoje essa questão faz-se presente: o encontro da dita 'alma gêmea' como, se não o único, o mais importante meio de se encontrar a felicidade.

Mas o que é essa configuração amorosa que denominamos romântica e que alguns autores caracterizam como um desejo nostálgico de totalidade?" (José Menezes e Maria Josephina Barros)



19 de abr. de 2010

essa beleza que não se compartilha

se tem uma coisa que existe
é a solidão
essa sim existe

muito e sempre
existe

e junto com ela passaram a existir dois tipos de pessoas:
as que a recusam e as que a respeitam


as que a recusam
se casam
e pensam estar completas
têm filhos e acham aí sentido
comem muitas macarronadas de domingo
lavam muitas camisas sujas de molho
sorriem muito essas pessoas

as que a respeitam
também se casam e têm filhos
e ensinam aos filhos o respeito ao silêncio de quem são eles
chegam ao mais profundo vermelho do tomate
sabor
e sabem que estão ali contemplando o domingo

em toda a sua tristeza
dos risos superficiais e lindos
lavam camisetas entoando poemas antiquíssimos
sorriem também
e preenchem mais linhas de poema
deste poema

18 de abr. de 2010

para encontrar o bom caminho

[os naskapi] São caçadores simples que vivem em grupos familiares isolados, tão separados uns dos outros que não conseguiram desenvolver costumes tribais nem crenças e cerimônias religiosas coletivas. Ao longo da sua vida solitária, o caçador naskapi tem que contar apenas com as suas vozes interiores e as revelações do seu inconsciente; não há mestres religiosos que lhe digam no que acreditar, nem rituais, festas ou costumes que lhe sirvam de apoio. No seu universo elementar, sua alma é apenas um "companheiro interior", que chama de "meu amigo" ou Mista'peo, significando "Grande Homem". Mista'peo habita o coração do homem e é um ser imortal. No momento da morte, ou pouco antes, ele deixa o indivíduo para, mais tarde, reencarnar-se em outro.
Os naskapi que prestam atenção a seus sonhos, tentam descobrir os seus significados e testar sua verdade podem estreitar seu realacionamento com o Grande Homem. Ele os auxilia e manda-lhes mais e melhores sonhos. Assim, a principal obrigação de um naskapi é obedecer às instruções que lhe são transmitidas por meio dos sonhos e dar aos seus conteúdos uma forma duradoura nas artes. Mentiras e desonestidades afastam o Grande Homem do reinado interior do indivíduo, enquanto a generosidade, o amor ao próximo e aos animais atraem-no e lhe dão vida. Os sonhos oferecem ao naskapi todas as possibilidades para encontrar o bom caminho, não só no seu mundo interior mas também no mundo exterior da natureza. Ajudam-no a prever o tempo e dão-lhe conselhos inestimáveis na caça, da qual depende toda sua vida.
In: JUNG. O homem e seus símbolos.

17 de abr. de 2010

podium

meu coração tá bom não
tá teimoso

nunca é bom fazer teimosia com a vida, com horoscópo e Deus.
além de perder a aposta
logo de início,
dá aquela vergonha de não ter percebido que era hora de jogar a toalha.
de não ter percebido que era hora de respeito ao concorrente maior:
a vida, o horóscopo, Deus.
e fica você lá se esmilinguindo já fora do ringue, da razão e do sentido.
já era hora de começar outra luta - com tanto potencial de derrota como a outra.
porque na vida não há só uma opção.

16 de abr. de 2010

isso

a gente fica quietinho em silêncio
porque não há palavras que digam
isso

a gente fica miudinho em silêncio
porque
dá um medo
isso

o silêncio e a gente, humildade apenas
e já é suficiente
para isso

nós em silêncio e, isso,
contemplamos melhor o mundo

esse silêncio de nós dois assim
é a pura maldade que tranforma
em enigma
isso

então nós dois em silêncio
porque palavras, vocabulário
tudo tão perigoso
isso
não?

15 de abr. de 2010

jura de amor eterno

e como são pernas tão brancas, convém que sejam alisadas
e como é um corpo tão perto, é bom que o afaguemos
e como comemos delícias, abra de novo sua boca
se fomos aos mais belos lugares, para lá retornaremos
e, "sim", se eu disse em resposta, não há "não" que me caiba agora?
e já que houve esse beijo, esse beijo,
experimentamos de novo esse sexo, esse sexo.

e como foi tudo tão bom, é prudente que se repita
que se repita
que se repita
que se repita

até que fique tudo igual

e se perca a grande lição de mestre
"repetir, repetir, até ficar diferente".

10 de abr. de 2010

viver é assim

a nobreza, a nobreza
apreciar o mundo
esvaziar bastante
a gordura da alma
acordar cedo e ver o sol
pele bronzeada
dormir bem
olhos fechados
respeitar o tempo
respeitar os ritmos
saber de Deus
comer caqui e abacate
comprar alface
ganhar desconto
gostar dos bichos

dos mais pequenos
pedrinhas e tronco, um beijo
oi aos vizinhos
carregar peso
texturas de camiseta
comprar sabão
água no filtro
sonhar amor
estar presente
a nobreza, a nobreza.

8 de abr. de 2010

o amor

tenho pensado sobre o jogo. esse de tabuleiro rubro. as regras. em quanto importa o jogo, o perigo. E quanto importa o jogo, o perigo? há esse momento de passar os dados, em que de leve se troca aquilo a que chamam de brilho do olhar, quando pode ser que haja um roçar de dedos de ponta de dedos de unhas.
- é o mais perto que chegaremos um do outro? esse passar dos dados...
a sorte. jogo querendo que você ganhe. que você receba o troféu que sou eu em beijo branco de cavaleiro que luta.
e é aí que eu perco: todo o meu braço de lançar dados, todo o meu líquido destinado aos olhos, todo esse músculo ou coração.
não sou boa jogadora.

7 de abr. de 2010

qual é o bicho?

você sabia que chimpanzés e golfinhos
indubitáveis animais
são mamíferos superiores porque estabelecem elos de afeto?

e o do espelho,
que bicho é esse?
qual chimpanzé de mão dada é você?

6 de abr. de 2010

sobre o ponto do doce

ou

justificando doçuras

ou

sabe por quê, doçura?

eu te espero com doçura, quase caramelo. e tenho medo deste ponto de bala que eu te preparo. algo pode derreter. também o açúcar e seu cristal podem me ferir a visão e deixar aquele gosto das lágrimas, em alguns casos.
o doce é só porque te queria confortável, aqui perto de mim, não sou uma arara de penas verdes exóticas, não sou uma fera da boca vermelha, não sou teu coelhinho. mas sou doce. pode ficar por perto, combina. também sei só o que não sou.
não te quero provisório, mais provisório que a vida é. dure um pouquinho mais que a vida, então. este é o meu romantismo, o mais romântico que há. que há. viu? continuo doce. é que te quero muito por perto, e nem quero te assustar. não faço nada de mal para ti, nada de mal. nada de próposito. não quero. mas nunca é bom exagerar em açúcares.

5 de abr. de 2010

diálogo a ser proferido daqui a XXX dias

- nós estamos passando por um caminho. veja o caminho. há algumas flores, destas que nascem fácil. flor também nasce fácil, não se preocupe, sempre haverá nem que seja uma flor alaranjadinha nesse mundo.
- vamos de mão dada, mas, antes, eu te olho nos olhos e digo que só poderia mesmo seguir se você me desse a mão.
- eu te dou as mãos e firmo o pé. olho nos olhos para saber quem é você por de dentro.
- e eu te mostro o sangue, para não haver dúvidas da minha vontade de não esconder nada.
- mas há algo de hesitação sua em me mostrar o sangue. e o medo. nós dois sabemos da impossiblidade de ver além, afinal é só sangue, e mesmo vermelho, como deve ser. pretendo falar: "também tenho medo", você ouviria?
- já ouvi seu medo. fiz ele menor quando daquele beijo - não o da boca, escandaloso, mas o que foi dado em escápulas, com escrúpulos, você sentiu qual calor nesse momento?
- sim, a temperatura. presto muita atenção. sua mão é fria. e sua boca é quente.
- eu queria que você soubesse que além do sangue vermelho, igual ao dos meus semelhantes, há uma maravilha que eu posso oferecer.
- não comece frases com "eu queria", você não é ingênua. daí a maravilha.
- você me conhece bem? não. não é possível. logo... não conversamos, algumas partes deste diálogo são só imaginação, coisa etérea. estou suplementando seus monossílabos, porque sou capaz de idealização.
- mas eu existo.
- não nego.
- e então?
- o que sei de ti?
- me diga você.
- só sei do corpo e superfície. mas teve aquele jeito... aquele jeito que você deu com os olhos.
- como foi?
- você tentou mesmo, de verdade, um mergulho em mim.
- é verdade. me espantei com quem você parece ser, me pareceu bom.
- por isso me espantei. também. é como eu me sinto desde que eu te vi. preciso muito entrar.
- você sabe o caminho?
- pensei que estávamos nele, vejo as flores que nascem fácil. devo me preocupar?
- não, as flores nascem mesmo fácil.

3 de abr. de 2010

incomunicabilidade

- Você tem os seus mistérios.
Você me diria, como se quisesse adentrar.
- Mas, querido, e a chave e o penhasco?
Digo ao te ver à porta dos prazeres, antes do hall,
pensando possuir castelos.

1 de abr. de 2010

oração

pássaros a florir
flores a passear
nas ondas que já foram pedras e que serão mar

passa passa tempo
e traz tudo o que for novo de novo
até eu amar o que eu puder tocar