22 de nov. de 2009

Estudos sobre o romantismo

Parte II: "José Matias"
Vê se ajuda a entender:
José Matias é apaixonado por Elisa - viúva de Matos Miranda e agora casada com um homem de bigodes negros (o Torres Nogueira). Ao ficar viúva, Elisa quis casar com J. M., que, espantosamente, a recusou.
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"Havia, porém, uma tremenda e dolorosa mudança - a do José Matias! Adivinha o meu amigo como esse desgraçado consumia os seus estéreis dias? Com os olhos, e a memória, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, nas janelas, nos jardins da Parreira! Mas agora não era de vidraças largamente abertas, em aberto êxtase, com o sorriso de segura beatitude: era por trás das cortinas fechadas, através duma escassa fenda, escondido, surrupiando furtivamente os brancos sulcos do vestido branco, com a face toda devastada pela angústia e pela derrota. E compreende porque sofria assim, esse pobre coração? Certamente porque Elisa, desdenhada pelos seus braços fechados, correra logo, sem luta, sem escrúpulos, para outros braços, mais acessíveis e prontos... Não, meu amigo! E note agora a complicada subtileza desta paixão. O José Matias permanecia devotamente crente de que Elisa, na profundidade da sua alma, nesse sagrado fundo espiritual onde não entram as imposições das conveniências, nem as decisões da razão pura, nem os ímpetos do orgulho, nem as emoções da carne - o amava, a ele, unicamente a ele, e com um amor que não deperecera, não se alterara, floria em todo o seu viço, mesmo sem ser regado ou tratado, como a antiga Rosa Mística! O que o torturava, meu amigo, o que lhe cravara longas rugas em curtos meses, era que um homem, um macho, um bruto, se tivesse apoderado daquela mulher que era sua! e que do modo mais santo e mais socialmente puro, sob o patrocínio enternecido da Igreja e do Estado, lambuzasse com os rijos bigodes negros, à farta, os divinos lábios que ele nunca ousara roçar, na supersticiosa reverência e quase no terror da sua divindade! Como lhe direi?... O sentimento deste extraordinário Matias era o de um monge, prostrado ante uma Imagem da Virgem, em transcendente enlevo - quando de repente um bestial sacrílego trepa ao altar, e ergue obscenamente a túnica da Imagem. O meu amigo sorri... E então o Matos Miranda? Ah! meu amigo! esse era diabético, e grave, e obeso, e já existia instalado na Parreira, com a sua obesidade e a sua diabetes, quando ele conhecera Elisa e lhe dera para sempre vida e coração. E o Torres Nogueira, esse, rompera brutalmente através do seu puríssimo amor, com os negros bigodes, e os carnudos braços, e o rijo arranque dum antigo pegador de touros, e empolgara aquela mulher - a quem revelara talvez o que é um homem!
Mas, com os demónios! essa mulher ele a recusara, quando ela se lhe oferecia, na frescura e na grandeza dum sentimento que nenhum desdém ainda ressequira ou abatera. Que quer?... É a espantosa tortuosidade espiritual deste Matias! Ao cabo de uns meses ele esquecera, positivamente esquecera essa recusa afrontosa, como se fora um leve desencontro de interesses materiais ou sociais, passado há meses, no Norte, e a que a distância e o tempo dissipavam a realidade e a amargura leve! E agora, aqui em Lisboa, com as janelas de Elisa diante das suas janelas e as rosas dos dois jardins unidos rescendendo na sombra, a dor presente, a dor real, era que ele amara sublimemente uma mulher, e que a colocara entre as estrelas para mais pura adoração, e que um bruto moreno, de bigodes negros, arrancara essa mulher de entre as estrelas e a arremessara para a cama!
Enredado caso, hem, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E concluí que o Matias era um doente, atacado de hiperespiritualismo, duma inflamação violenta e pútrida do espiritualismo, que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chinelas, a pele pouco fresca ao acordar, um ventre enorme durante seis meses, os meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e tormento, porque certo materialão, ao lado, se prontificara a aceitar Elisa em camisola de lã. Um imbecil?... Não, meu amigo! um ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor."
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"José Matias" é um texto de Eça de Queirós, que reflete criticamente sobre a postura idealizadora do romatismo. É legal!
Vale a pena ler o texto! Lê aí:

Um comentário:

  1. Bom demais...
    Ou, foi ótimo te ler hoje, sou seu fã! Estamos em mútuo estado fânico.
    Elogio maldoso para poetas: você usa muito bem a língua!
    Boa semana.

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Well... vejamos... eu poderia dizer que...
Fiquem à vontade!