Trágico e fascinante
O mundo de Bad’ó tem muitas luzes piscantes. Néon. O curioso é que não há dia nem noite, só néon e escuridão. Neste mundo as pessoas mantém os olhos arregalados para refletir o néon. Na verdade, elas acreditam absorver o néon e acreditam no brilho de seus olhos como algo de muita profundidade. Mas é só reflexo.
E é para não perder este brilho verde-azulado excitante – ou vermelho incandescente – que os habitantes do mundo de Bad’ó nunca piscam os olhos: eles foram proibidos de mostrar olhos piscos ou atônitos no meio da turbulência multicolorida. Por isso, o viajante que chega ao mundo de Bad’ó estranha um pouco encontrar tantas faces neutras.
Surpreendentemente, a rotina, neste mundo sem sol, existe.
Bad’ó e os outros habitantes acordam todos os dias e entram no mundo. Simplesmente. Estão todos cansados, mas não se escolhe o mundo em que se vive. Ou se escolhe?
Logo cedo, as línguas saltam das bocas e encontram outras, vermelhas como os lençóis gastos e sujos em que todos dormem amontoados.
Línguas soltas no ar, genitálias dependuradas em quadros de piche. Bonecos de playmobil desenhados. Muita carne envolta por roupas de couro. Este é o cenário.
Lá, os homens se recusam a fazer a barba e as mulheres insistem em ficar carecas.
O cheiro de sexo é muito forte, e gritos de gozo ecoam pelo ar.
Às vezes, como escape, Bad’ó, em seu próprio mundo, fecha os olhos e sonha com uma jovem de cabelos loiros. Em seu sonho, essa mulher pega uma cesta de linhas e borda uma caveira rosada em sua camisa de rock. Uma bela combinação.
Com a cabeça nos cabelos adocicados de sua mulher imaginária, Bad’ó aperta, quase esmagando os ossos, uma outra moça de meias azuis. É azul royal, e são meias longas. A mulher nos braços de Bad’ó é esquálida e esconde um segredo: também sonha, por trás dos olhos neutros. Sonha com um homem de dedos capazes de afastar delicado o fio de cabelo que pende de sua fronte. Na verdade, ela é bem a mulher rósea dos bordados, mas não parece, nem de longe. Bad’ó não pode ver porque as luzes são muito fortes e coloridas e se ele piscar os olhos... sua fragilidade...
Ademais, ele só pensa no rosa, confia demais nas cores, sem saber que esta superfície importa bem pouco nesse caso.
A única coisa que salvaria Bad’ó neste momento seria um pouco de luz branca. Esta cor importa. Mas antes ele teria que fechar as pálpebras com intensidade e por alguns séculos de segundos para alcançar algo da ordem da brancura. E isso não é possível.
A mulher de olhos escuros e roupa escura e meia azul royal não pode mostrar doçura, é outra proibição do mundo governado por Bad’ó, que inventou um pacto de força contrária à doçura. Sim, ele ignora seus sonhos. Por isso, ela nunca verá os dedos delicados de Bad’ó – ele não pretende desperdiçá-los com ela. Os dedos de Bad’ó já aprenderam, como num vício, a puxar com força os cabelos de mulheres que usam meia azul royal, e a boca também já está viciada, como num aprendizado autômato, a dizer palavras como “putinha”.
E a moça ri e gosta, de verdade. Enquanto permanece sonhando com outras verdades, outros lençóis, outras firmezas. Um cobertor cheirando a amaciante, naquela cama.
Todas as noites, os dois se despedem. Certos de que não encontraram o que procuravam. Afeto.
Se vão, cheios. Repletos. E insatisfeitos. Porque o que os enche não pôde ser dado. “Parece que ninguém quis”, afirmam, enganando-se.
No mundo de Bad’ó, vergonha maior é deixar vazar: lágrima, sentimento, ou qualquer outra aberração do tipo. É um mundo de esbórnia agradável e triste – como toda esbórnia.
Eu não sou habitante do mundo de Bad’ó nem pretendo me mudar para lá, mas o frequento amiúde: por curiosidade, conveniência ou transe.
Meus olhos de estrangeira piscam muito, por causa das luzes, dos sons e das texturas. Todos me olham de um jeito estranho. Riem muito (por dentro, para não ferir a neutralidade de suas faces) de meus olhos arregalados e estranhados. Como se não fosse permitido.
Na verdade, não é mesmo. Eu é que burlo a lei. Eu desço até esse mundo underground procurando pelo meu próprio. E enquanto não o acho, ele também me serve: as línguas, o piche, as carnes, os cabelos puxados. Aceito tudo. E uso meias azuis.
Meu único defeito é piscar os olhos, o que me denuncia como forasteira logo de cara.
E eu, que custo a admitir meu romantismo, devo dizer que penso no dia em que a moça fará bordados para Bad-ó, enquanto piscariam juntos e delicados, enfrentando toda a luz branca que houvesse, mesmo em tempos de trevas.
O mundo de Bad’ó tem muitas luzes piscantes. Néon. O curioso é que não há dia nem noite, só néon e escuridão. Neste mundo as pessoas mantém os olhos arregalados para refletir o néon. Na verdade, elas acreditam absorver o néon e acreditam no brilho de seus olhos como algo de muita profundidade. Mas é só reflexo.
E é para não perder este brilho verde-azulado excitante – ou vermelho incandescente – que os habitantes do mundo de Bad’ó nunca piscam os olhos: eles foram proibidos de mostrar olhos piscos ou atônitos no meio da turbulência multicolorida. Por isso, o viajante que chega ao mundo de Bad’ó estranha um pouco encontrar tantas faces neutras.
Surpreendentemente, a rotina, neste mundo sem sol, existe.
Bad’ó e os outros habitantes acordam todos os dias e entram no mundo. Simplesmente. Estão todos cansados, mas não se escolhe o mundo em que se vive. Ou se escolhe?
Logo cedo, as línguas saltam das bocas e encontram outras, vermelhas como os lençóis gastos e sujos em que todos dormem amontoados.
Línguas soltas no ar, genitálias dependuradas em quadros de piche. Bonecos de playmobil desenhados. Muita carne envolta por roupas de couro. Este é o cenário.
Lá, os homens se recusam a fazer a barba e as mulheres insistem em ficar carecas.
O cheiro de sexo é muito forte, e gritos de gozo ecoam pelo ar.
Às vezes, como escape, Bad’ó, em seu próprio mundo, fecha os olhos e sonha com uma jovem de cabelos loiros. Em seu sonho, essa mulher pega uma cesta de linhas e borda uma caveira rosada em sua camisa de rock. Uma bela combinação.
Com a cabeça nos cabelos adocicados de sua mulher imaginária, Bad’ó aperta, quase esmagando os ossos, uma outra moça de meias azuis. É azul royal, e são meias longas. A mulher nos braços de Bad’ó é esquálida e esconde um segredo: também sonha, por trás dos olhos neutros. Sonha com um homem de dedos capazes de afastar delicado o fio de cabelo que pende de sua fronte. Na verdade, ela é bem a mulher rósea dos bordados, mas não parece, nem de longe. Bad’ó não pode ver porque as luzes são muito fortes e coloridas e se ele piscar os olhos... sua fragilidade...
Ademais, ele só pensa no rosa, confia demais nas cores, sem saber que esta superfície importa bem pouco nesse caso.
A única coisa que salvaria Bad’ó neste momento seria um pouco de luz branca. Esta cor importa. Mas antes ele teria que fechar as pálpebras com intensidade e por alguns séculos de segundos para alcançar algo da ordem da brancura. E isso não é possível.
A mulher de olhos escuros e roupa escura e meia azul royal não pode mostrar doçura, é outra proibição do mundo governado por Bad’ó, que inventou um pacto de força contrária à doçura. Sim, ele ignora seus sonhos. Por isso, ela nunca verá os dedos delicados de Bad’ó – ele não pretende desperdiçá-los com ela. Os dedos de Bad’ó já aprenderam, como num vício, a puxar com força os cabelos de mulheres que usam meia azul royal, e a boca também já está viciada, como num aprendizado autômato, a dizer palavras como “putinha”.
E a moça ri e gosta, de verdade. Enquanto permanece sonhando com outras verdades, outros lençóis, outras firmezas. Um cobertor cheirando a amaciante, naquela cama.
Todas as noites, os dois se despedem. Certos de que não encontraram o que procuravam. Afeto.
Se vão, cheios. Repletos. E insatisfeitos. Porque o que os enche não pôde ser dado. “Parece que ninguém quis”, afirmam, enganando-se.
No mundo de Bad’ó, vergonha maior é deixar vazar: lágrima, sentimento, ou qualquer outra aberração do tipo. É um mundo de esbórnia agradável e triste – como toda esbórnia.
Eu não sou habitante do mundo de Bad’ó nem pretendo me mudar para lá, mas o frequento amiúde: por curiosidade, conveniência ou transe.
Meus olhos de estrangeira piscam muito, por causa das luzes, dos sons e das texturas. Todos me olham de um jeito estranho. Riem muito (por dentro, para não ferir a neutralidade de suas faces) de meus olhos arregalados e estranhados. Como se não fosse permitido.
Na verdade, não é mesmo. Eu é que burlo a lei. Eu desço até esse mundo underground procurando pelo meu próprio. E enquanto não o acho, ele também me serve: as línguas, o piche, as carnes, os cabelos puxados. Aceito tudo. E uso meias azuis.
Meu único defeito é piscar os olhos, o que me denuncia como forasteira logo de cara.
E eu, que custo a admitir meu romantismo, devo dizer que penso no dia em que a moça fará bordados para Bad-ó, enquanto piscariam juntos e delicados, enfrentando toda a luz branca que houvesse, mesmo em tempos de trevas.
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Well... vejamos... eu poderia dizer que...
Fiquem à vontade!