31 de mai. de 2010

Eros e Psiquê


António Canova

28 de mai. de 2010

simple red

Uma partitura velha, com marcações arcaicas no pentagrama. Você me tirou isso da pasta e eu que nunca soube que você lia partituras... As folhas amareladas. Um certo suspense: você solfejaria aquilo pra mim. A música falava algo como "Euteamo, oh, querida." E eu pensava: "Que bobagem." E: "Talvez não seja a música certa". Era mesmo uma complexa partitura. Eu não acreditava que você pudesse lê-la.
Você não cantou os outros versos. Parecia não lembrar.
- Mas olhe a partitura.
Os símbolos arcaicos. Uma hesitação sobre o que fazer com aquelas folhas inúteis.
Ligamos o rádio. Eu cantarolei bobamente a música familiar e comercial que tocou. E você disse: Que bom... pelo menos você gosta de Simple Red. Eu não sabia que gostava de Simple Red e duvidei se isso era bom.

27 de mai. de 2010

O mundo de Bad’ó

Trágico e fascinante

O mundo de Bad’ó tem muitas luzes piscantes. Néon. O curioso é que não há dia nem noite, só néon e escuridão. Neste mundo as pessoas mantém os olhos arregalados para refletir o néon. Na verdade, elas acreditam absorver o néon e acreditam no brilho de seus olhos como algo de muita profundidade. Mas é só reflexo.
E é para não perder este brilho verde-azulado excitante – ou vermelho incandescente – que os habitantes do mundo de Bad’ó nunca piscam os olhos: eles foram proibidos de mostrar olhos piscos ou atônitos no meio da turbulência multicolorida. Por isso, o viajante que chega ao mundo de Bad’ó estranha um pouco encontrar tantas faces neutras.
Surpreendentemente, a rotina, neste mundo sem sol, existe.
Bad’ó e os outros habitantes acordam todos os dias e entram no mundo. Simplesmente. Estão todos cansados, mas não se escolhe o mundo em que se vive. Ou se escolhe?
Logo cedo, as línguas saltam das bocas e encontram outras, vermelhas como os lençóis gastos e sujos em que todos dormem amontoados.
Línguas soltas no ar, genitálias dependuradas em quadros de piche. Bonecos de playmobil desenhados. Muita carne envolta por roupas de couro. Este é o cenário.
Lá, os homens se recusam a fazer a barba e as mulheres insistem em ficar carecas.
O cheiro de sexo é muito forte, e gritos de gozo ecoam pelo ar.
Às vezes, como escape, Bad’ó, em seu próprio mundo, fecha os olhos e sonha com uma jovem de cabelos loiros. Em seu sonho, essa mulher pega uma cesta de linhas e borda uma caveira rosada em sua camisa de rock. Uma bela combinação.
Com a cabeça nos cabelos adocicados de sua mulher imaginária, Bad’ó aperta, quase esmagando os ossos, uma outra moça de meias azuis. É azul royal, e são meias longas. A mulher nos braços de Bad’ó é esquálida e esconde um segredo: também sonha, por trás dos olhos neutros. Sonha com um homem de dedos capazes de afastar delicado o fio de cabelo que pende de sua fronte. Na verdade, ela é bem a mulher rósea dos bordados, mas não parece, nem de longe. Bad’ó não pode ver porque as luzes são muito fortes e coloridas e se ele piscar os olhos... sua fragilidade...
Ademais, ele só pensa no rosa, confia demais nas cores, sem saber que esta superfície importa bem pouco nesse caso.
A única coisa que salvaria Bad’ó neste momento seria um pouco de luz branca. Esta cor importa. Mas antes ele teria que fechar as pálpebras com intensidade e por alguns séculos de segundos para alcançar algo da ordem da brancura. E isso não é possível.
A mulher de olhos escuros e roupa escura e meia azul royal não pode mostrar doçura, é outra proibição do mundo governado por Bad’ó, que inventou um pacto de força contrária à doçura. Sim, ele ignora seus sonhos. Por isso, ela nunca verá os dedos delicados de Bad’ó – ele não pretende desperdiçá-los com ela. Os dedos de Bad’ó já aprenderam, como num vício, a puxar com força os cabelos de mulheres que usam meia azul royal, e a boca também já está viciada, como num aprendizado autômato, a dizer palavras como “putinha”.
E a moça ri e gosta, de verdade. Enquanto permanece sonhando com outras verdades, outros lençóis, outras firmezas. Um cobertor cheirando a amaciante, naquela cama.
Todas as noites, os dois se despedem. Certos de que não encontraram o que procuravam. Afeto.
Se vão, cheios. Repletos. E insatisfeitos. Porque o que os enche não pôde ser dado. “Parece que ninguém quis”, afirmam, enganando-se.
No mundo de Bad’ó, vergonha maior é deixar vazar: lágrima, sentimento, ou qualquer outra aberração do tipo. É um mundo de esbórnia agradável e triste – como toda esbórnia.
Eu não sou habitante do mundo de Bad’ó nem pretendo me mudar para lá, mas o frequento amiúde: por curiosidade, conveniência ou transe.
Meus olhos de estrangeira piscam muito, por causa das luzes, dos sons e das texturas. Todos me olham de um jeito estranho. Riem muito (por dentro, para não ferir a neutralidade de suas faces) de meus olhos arregalados e estranhados. Como se não fosse permitido.
Na verdade, não é mesmo. Eu é que burlo a lei. Eu desço até esse mundo underground procurando pelo meu próprio. E enquanto não o acho, ele também me serve: as línguas, o piche, as carnes, os cabelos puxados. Aceito tudo. E uso meias azuis.
Meu único defeito é piscar os olhos, o que me denuncia como forasteira logo de cara.
E eu, que custo a admitir meu romantismo, devo dizer que penso no dia em que a moça fará bordados para Bad-ó, enquanto piscariam juntos e delicados, enfrentando toda a luz branca que houvesse, mesmo em tempos de trevas.

20 de mai. de 2010

além da cidade dos homens

LOUCO, O
De todas as imagens do jogo do Tarô, eis a mais misteriosa, a mais fascinante, portanto, e a mais inquietante. Diferentemente dos outros arcanos maiores, numerados de um a vinte e um. O Louco não tem número. Ele se coloca, portanto, de fora do jogo, isto é fora das cidades dos homens, fora dos muros. Ele caminha apoiado em um bastão de ouro, na cabeça um boné da mesma cor, parecido com o cesto que simboliza a loucura; suas calças estão rasgadas e, sem que ele pareça se dar conta, um cachorro, atrás dele, agarra o tecido, deixando aparecer a carne nua. É um louco, concluirá o observador, abrigado por trás das seteras da cidade. É um Mestre, murmurará o filósofo hermético, notando que o bastão, em cuja ponta ele carrega uma trouxa, sobre o ombro, é branco, da cor do segredo, cor da iniciação, e que seus pés calçados de vermelho se apoiam firmemente sobre um chão bem real, e não sobre um suporte imaginário. Sua sacola está vazia, mas é cor-de-rosa, como sua coxa e como o cachorro que tenta agarrá-lo: símbolos da natureza animal e de posses, com as quais não se preocupa. Por outro lado, o ouro do conhecimento e das verdade transcendentais é a cor do bastão sobre o qual ele se apoia, da terra sobre a qual ele caminha, dos seus ombros e do seu cabelo. E acima de tudo, ele caminha, isso é o importante, ele não vaga errante, ele avança.
[...] ele caminha na frente, com uma evidência solar, sobre as terras virgens do conhecimento, por além da cidade dos homens.
(Gherbrant & Chevalier. Dicionário dos símbolos.)


19 de mai. de 2010

formato de grito

grito insônico internáutico madrugático

ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh


sosilencio


aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah


que grito te cabe, noite?

13 de mai. de 2010

Hoje, de Wally Salomão

O que menos quero pro meu dia
polidez, boas maneiras.
Por certo,
um Professor de Etiquetas
não presenciou o ato em que fui concebido.
Quando nasci, nasci nu,
ignaro da colocação correta dos dois pontos,
do ponto e vírgula,
e, principalmente, das reticências.
(Como toda gente, aliás...)

Hoje só quero ritmo.
Ritmo no falado e no escrito.
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.

Não está prevista a emissão
de nenhuma “Ordem do dia”.
Está prescrito o protocolo da diplomacia.
AGITPROP – Agitação e propaganda:
Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia.
Ápice do ápice.

Alguém acha que ritmo jorra fácil,
pronto rebento do espontaneísmo?
Meu ritmo só é ritmo
quando temperado com ironia.
Respingos de modernidade tardia?
E os pingos d’água
dão saltos bruscos do cano da torneira
e
passam de um ritmo regular
para uma turbulência
aleatória.

Hoje...

11 de mai. de 2010

intransponível

Numa quadra de basquete, eu desafiei um jogador gigante. Um negro forte e alto, que obviamente se mostrou indiferente ao fato de jogar comigo. Como era impossível jogar com ele, reuni um grupo de outros jogadores (idades, gêneros e alturas diversificadas) para serem do meu time.
Ficávamos correndo desesperadamente e ele se movia tranquilo, sempre na borda da quadra. Cheio de superioridades. Taticamente, para seu desgaste ser ainda menor com o bando frenético e barulhento, ele passou a jogar a bola num ponto em que nós não conseguíamos pegar. A bola estava sempre numa velocidade superior a nossa - à minha especialmente, já que eu liderava a equipe acelerada. Então ia para fora de campo, e ele, como era jogador único de seu time, sempre dava a saída da bola, sempre estava com a posse da bola. Não corria, não entrava em contendas físicas, não suava. Nossa situação era: ver, exautos, bolas passarem por sobre nossas cabeças e sairem rolando para fora da linha. Corríamos atrás, mas ele as pegava do outro lado, tranquilo. Por um momento, pensei em questionar as regras, mas não havia regras. Só havia ele e meu time. Colocaria todo o meu time para protestar a injustiça de jogar com uma sumidade dos esportes? Todo mundo estava ali porque queria, aceitava. Se não, era só ir embora, simples assim. E, claro, havia ainda uma solução que eu não dei conta de colocar em prática: eu poderia parar, respirar e olhar fundo nos olhos dele, com toda aquela calma que eu admirava e queria. Absorver aquilo que fazia dele o gigante que ele se mostrava.
Mas não fiz isso. E não havia propriamente jogo, nosso time não tocava na bola. O adversário se mantinha no nosso campo, cada vez mais próximo da cesta, ainda com a vantagem de conseguir fazer pontos a partir de uma distância enorme.
Por um momento, consegui pegar a bola, mas fiquei tão atrapalhada que corri na direção errada, tropecei, hesitei, errei a mira. Ele a recuperou num respiro.
E continuou nas bordas, continuou mandando a bola fora do nosso alcance, continuou dominando no nosso campo.
Era um hábil jogador. E eu, simplesmente uma mulher. Sentia-me como se estivesse fora de meu território e quisesse a todo custo provar habilidades que eu não tinha.

10 de mai. de 2010

in

o que eu escrevi ontem soa incongruente e irreal
e este texto aqui provavelmente não valerá nada

exponho-me nestas palavras que não dizem do que sou
esta matéria

escrevo para aqueles que não me conhecem
e penso em ridículos aplausos

experimento, experimento
externalizo, externalizo
exprimo, exprimo

escondo

tudo isso para ver se chego aqui, in
cógnita

6 de mai. de 2010

oração espontânea

Peço que afaste as energias ruins de mim
Que meus amigos sempre saibam da minha amizade
Que eu tenha mais felicidade que tristeza
Que minha vida seja simples
Que a comida não me caia mal
Que meu corpo seja circundado por uma luz forte que afaste qualquer mal
Que eu possa fazer boa arte por este mundo
Que nunca precise fazer operação
Que eu seja magrinha, renuncie aos excessos
Que nunca atropele cachorros nem gatos, nenhum bicho
Que a minha morte seja quando tiver que ser
E que seja rápida, mas não assuste os vivos
Que não dê trabalho nem sofrimento demasiado para ninguém
Que meu coração possa se sentir sempre limpo
E que meu corpo sinta que acabou de sair do mar, mesmo em meio aos semáforos da cidade
Que eu nunca esqueça de agradecer
Que eu saiba profundo que eu sou bem pequena diante o mundo
E que o tempo é mesmo remédio
E que eu saiba esperar as tormentas passarem
Que eu saiba ficar calada quando preciso
Que eu saiba falar quando preciso
Que eu não guarde silêncios, lágrimas, teimosias
Que eu saiba lembrar a minha vivacidade quando eu for bem velha
Que meus belos princípios da juventude amadureçam, mas não desbotem
Que eu nunca esqueça o que é ser humilhada e o que é ser respeitada
E que eu respeite sempre quem deve ser respeitado
E que eu nunca humilhe ninguém, nem por acaso
Que eu nunca esqueça o que é não ouvir
E que eu sempre ouça
Que eu saiba ler mentiras e verdades nos olhos das pessoas
Que eu ouça os recados e mantenha as pedras polidas
Que eu tenha força constante para me livrar das superfícies
Que eu me engane pouco
Que eu não me vanglorie do que eu penso que sou
Que dê tudo certo
Que eu não esteja querendo demais

o oco escuro esquece

2 de mai. de 2010

tanto quanto não se pode ver

A lua brilha quando é nova
e os cachos do cabelo sempre podem ter vento à vontade nessa ocasião.

a vida roda porque é viva
e o sol arde sobre a pele dos tolos
sou tola bronzeada
branquinha
tenho todos os perfumes em mim
vou do cravo à rosa
canela jasmim e odor de mulher
brilho de formusura porque a noite é silenciosa
e eu estou sozinha
no puro estado latente
das almas que vibram
com as estrelas, o trânsito e os animais

sou homem também
visto todos os ternos com todos os cortes, riscados e dobras
basto-me com minhas mãos peludas a girar os botões da máquina
a que escreve, a que faz filhos, a que locomove

locomotiva
sou isso também
e daí?

sorrio para todas as donzelas em frescor
toco um tamborim
acaricio o adolescente

despedaço as delicadezas e só encontro mais
porque não me falta rudeza e pé no chão e feridas nas ancas
admito
choro todas as lágrimas

as de crocodilo eu delicio com limão
e lambo nos beiços as gotas dos drinques de morango que devorei ontem na noite fake dos que ocupam as mãos com cigarros
rio da falta de expressão
saboreio o mundo pobre, lindo e magnifíco que me salta aos olhos de minuto em minuto
meus olhos se movem,
fechados ou abertos, na velocidade que é permitida aos olhos

a mais lenta a mais rápida
todas elas


soletro palavras com letras de outros alfabetos
canto hinos secretos que aprendi com os insetos
amaldiçoo os fracos

e dou chá de anis aos mortais que me incendeiam a cama
beijo mãos sujas de mendigos
para ter na minha boca todos os sabores que Deus criou

durmo sob o gelo e acordo em brasas
e ainda assim sou esta de blusa de lã
que está na sua frente
sob sua mirada vazia

sou obsecada por linguagens

e não caibo em mim
como os loucos
sou êxtase e frenesi
veneno de mil bactérias para quem me toca
elixir dos magos do oriente
adornos dos cabelos das virgens

sou a alma de Raul
sinto invejo de Whalt
quero ser Tereza ou madre
e vibro a guitarra dos malditos
e pulso a veia saltitante de um anjo
e mais

tanto quanto não se pode ver.

Sou a pessoa mais feliz do mundo.

1 de mai. de 2010

observação importante

ontem um mendigo me disse que os vagalumes dormem durante o dia.

o que eu sei

Senhorita Rita acordou com uma grande vontade de dizer: Não sei. Assim, a tudo que lhe perguntam, ela passou a responder: Não sei. Muito melhor do que sim, esta tal palavra com a qual as pessoas finas elegantes sinceras têm afinidade. Muito melhor do que não, essa outra que pode ser irreversível. Não sei.

- Você quer sorvete?
- não sei.
- você gosta de mim?
- não sei.
- você está me ouvindo?
- não sei.

Por que ela deveria saber, coitadinha? se ela é humana? Por que ela deveria saber, pobrezita? se ela não é Deus. Por que não se juntar aos filósofos do só sei que nada sei? Por que responder de imediato às urgências do mundo? Não sei.
E desde então, Senhorita Rita não faz mais escolhas. Come se a comida estiver no garfo - caso o garfo esteja em suas mãos e a fome lhe levar para o prato. Dorme quando encontra cama no caminho. Toma banho se este for o destino de seu corpo. Acaricia os gatos que lhe pularem no colo (veja bem: suas mãos são sempre lisas). Lê o que os olhos encontram em seu curso dentro do globo (ela também fecha os olhos, você já viu). Dança quando escuta música. Beija quando encontra lábios vermelhos. Ou quentes.
Mas se tiver que decidir... ela dirá a verdade:
- Não sei.

renúncia

vai ter um dia
você vai ter um dia ruim
e vai se lembrar de mim
porque eu fui um dia bom
porque eu sou produto de excelência
raridade no mercado

você vai me telefonar
experimentando ligar fios partidos
e eu precisarei dizer não

o que não fará nenhuma diferença
esta recusa
pois ainda haverá a mesma
gravidade
a lei, as órbitas, os astros
igual

interferir em algo? no curso?
seria preciso arrancar todas as flores da superfície terrestre
mexer nos átomos
criar o desequilíbrio das massas