30 de mar. de 2010

dia de cinzas

Peço perdão para dizer o óbvio:

um feriado é para as tardes azuis


Veja: nenhum sol se esconde enquanto é feriado


Um feriado é para as coisas difíceis profundas mirabolantes

visitar a família, escalar um morro, atravessar o mar


num feriado todos deviam atravessar o mar


E eu

deveria estar em todos os lugares refrescantes e maravilhosos

ser sorridente como em holywood

corajosa como uma caravana

ensolarada como o feriado


ser o que eu não sou

provar o que eu não sou

comprovar minha capacidade de aproveitar o feriado

até sua última gota de felicidade e saudade


eu deveria abrir os braços e deixar saia e cabelo ao vento

eu deveria não estar aqui


eu deveria não escrever esses versos

mas arrancar a roupa


eu deveria não abrir a janela

mas abolir a janela


eu deveria ver o mundo sem telas

do alto de uma montanha


eu deveria não pensar o futuro um amor

mas amar porque é amor


eu deveria não beber esse refresco

mas achar uma fonte


hoje, que é feriado, eu aqui

preocupo baixinho:

"que desperdicio de céu, de azul, de amor."


A sorte é que

eu não morri

ainda

29 de mar. de 2010

sonho do quarto armário

Num quarto num lugar afastado roça ou periferia, uma cama e um lençol levemente mais curto que a cama. Branco: a cor do lençol. O lençol talvez não fosse curto, mas como nos movimentamos muito em sexo partes de beirada do colchão apareciam. Também sujeiras (porque o lençol era branco) , farelos de comida, roupas no chão, embalagens de biscoito. Isso mostrava que era um lugar onde se estava provisoriamente: não havia lençol para trocar, nem guarda roupas para as roupas jogadas, e se comia biscoito, que é comida provisória.
Sair era um risco, porque seríamos - eu e ele - apedrejados. E se não houvesse pedra, haveria ofensas. E se não houvesse ofensas, haveria olhares.
Mas eu não podia ficar para sempre naquele armário. Saímos para ir embora e, antes, passamos na padaria e compramos mais biscoito, de embalagens à la nestlé, porque ainda seguiríamos para mais lugares provisórios, quartos de lençol branco.

só pra rimar, meu raimundo

no fim é tudo assim
nem percebi que era fim

enfim não estamos sós
veja aqui o mundo em mim

assim a vida flui no seu passo
cansaço a pesar no meu rim

22 de mar. de 2010

Memória 3

Um dia de chuva

quando já se está molhado
é melhor amar a chuva
cada gota

o vestido colado na perna

tirei o sapato
e pisei na grama e na lama
eu nunca conheci a grama da minha cidade grande
sem sapato

- sou mais cidadã hoje

Lembra-se, pai, quando eu andei na enxurrada a primeira vez?
Eu te contei. Orgulhosa de um brinquedo novo:
- eu andei na enxurrada a tarde inteira!
Você respondeu que a enxurrada tinha muitos micróbios.
Eu nunca vi um micróbio na vida.

Hoje eu consumi muitos micróbios, pai. De novo.
E andei pela tempestade, sob as árvores.
Muitos raios me atingiram

19 de mar. de 2010

amor de montão

imagine a gente subindo um monte
lado a lado
sem tensão sexual
só amor

amor pelas pedras pequenas
amor pela umidade

lá em cima a gente sentaria lado a lado
ofegantes
suados
amados
pelas pedras pequenas e pela umidade

amando o monte
e um ao outro
por causa do amor ao monte

o esclarecimento da mulher esclarecida

Há muito tempo, quarta-feira é o meu dia de namorar. Nessa quarta em questão, eu estava na cama, nua, abraçada a raposo tavares, que não é meu namorado. Não é. O telefone de raposo tocou:
- oi [...] não [...] hum [...] agora não posso. [...] [...] tá bom, eu te ligo. [...] um beeeijo.
Tava na cara que ele conversava com uma mulher. O sensato seria eu não perguntar nada, porque o raposo não era meu namorado. Mas o mais importante era perguntar, porque essa era a vontade. Eu sabia que o raposo não gostava de mentir. Segundo ele, ele não mentia nunca.
- quem era? Perguntei.
- era a laura, uma amiga minha.
Como meu papel ali era de mulher esclarecida e moderna que fica nua com o raposo tavares que não é o seu namorado, entendi que eu podia e devia perguntar tudo o que eu quisesse, mas não com um tom de cobrança. Um tom de esclarecimento.
- você sai com ela assim desse jeito que sai comigo?
- saio.
- qual é o dia dela?
- é sexta.
Nesse ponto, eu fiquei irritada. O meu dia era quarta e o dela era sexta!
- Mas sexta você não joga? - controlei a voz para não transparecer a irritação leve.
- Já faz muito tempo que eu não jogo, moça. Meus amigos não se reunem mais na sexta.
Eu nunca quis a sexta. Na verdade, quarta era o melhor dia pra mim. Mas me veio uma forte vontade de testar minha importância na vida de raposo e exigir a sexta. Claro que achei isso histérico demais porque meu papel ali, como eu disse, era de mulher esclarecida e moderna que fica nua com o raposo tavares que não é o seu namorado. Parti para outro ponto.
- como é a laura.
- bonita. Mais baixa que você. Magra. Delicada.
- mais nova, é claro. Comentei já com a imagem certíssima de laura na cabeça, considerando também que eu e raposo tínhamos a mesma idade praticamente.
- sim, é mais nova que eu. E é também gênio.
- hã? Como assim, ela é genial? - falei meio rindo, uma pontinha de inveja que o raposo não percebeu.
- não, gênio mesmo. Tem um QI muito acima da média.
- ah, que ótimo. Quer dizer que às sextas você sai com a laurinha, que é gênio? É uma coisa interessante de se saber. - tom bem humorado - O que que ela faz? A gênio estuda? - brinquei.
- estuda. Tem uma bolsa numa escola especial para gênios, mas nem precisava... A escola só tem como aumentar 5% da inteligência dela, que já está quase no limite.
Pensei: "se ela for mesmo gênio não ia querer ficar com o raposo, porque ele não vale tanto a pena assim. Por isso, não é o meu namorado. Ou será que eu, que não sou gênio, não dei conta de perceber o valor de raposo?"
- a laurinha sabe de mim? Por que ela ligou numa quarta? - lembre-se o tom de minha voz, continuava sendo de doçura.
- bm ahco que ela sbae... pracee sbae...
- não entendi. Sabe ou não sabe?
- não sabe. Nunca falei.
Fiz um silêncio. Continuei:
- seria melhor você ir embora agora. - preste atenção na voz doce, baixa e firme.
- por quê? Eu vou contar pra laura. - ele também falava com calma.
- não. Você não quer contar pra laurinha, que é a sua queridinha protegida, protegida da verdade cruel que é a de termos desejo e realizarmos esse desejo enquanto se finge que não se tem e se escolhe uma bela noiva esbranquecida e delicada para fazer pouco sexo e contar muitas mentiras. Você quer namorar a laurinha, enquanto se distrai comigo. Eu também estou me distraindo com você. Seria bom se fosse só isso, mas nunca é. Nunca estamos no mesmo plano. Com o mesmo plano na cabeça. Nós não estamos no mesmo nível, eu não alimento nenhum laurinho. Além do mais, quando o relacionamento de vocês se acertar e você for conhecer a família dela, nossa distração de quarta vai acabar, e será meio brusco para mim. Não quero. Não gosto de nada brusco. Você sabe, há afetos entre nós, mesmo que não seja amor.
Nesse caso, a suavidade calma da voz foi ligeiramente abalada pelo exceso de palavras.
Raposo se vestiu e eu fiquei triste - mas achei que fiz certo com esta conversa.

18 de mar. de 2010

Minas Gerais

Eu bem queria ter nascido em cidade de mar
perto de ondas

e fazer poemas de movimento
e yemanjá

e falar de vagas e sal e lágrima

e uma série de olas
ao mar
oh mar
meu mar

como não nasci
faço poemas sobre toda a água que corre
por onde correr
a água em mim - que sempre há
dessa porcentagem líquida que me compõe

mas, me resta,
é claro,
saudade de ti
oh, mar

pour femmes

Fui a um aniversário e recebi um presente. Era como um spray de perfume e era também um remédio. Coisa rara, chic e cara - apesar do rótulo simples.
No rótulo, letras cor-de-rosa diziam ser um produto para "femmes". Logo que o ganhei tive o ímpeto de borrifar um pouco no meu antebraço, para saber o cheiro, mas minha amiga (a que me presenteou) me impediu. Disse que era para fazer isso num momento privado e calmo, porque os efeitos seriam mirabolantes. Imaginei algo como um orgasmo.
- Minha amiga é homossexual e deve entender de orgasmo mais que eu. Foi o que pensei.
E havia também uma frase, descrevendo a função do produto: "Tudo no seu lugar certo".
Entendi que era mesmo um remédio milagroso, que aliviaria a angústia, a sensação de deslocamento, os vazios interiores e colocaria as vibrações dos chacras nos seus devidos lugares - e tudo em forma de orgasmo.
Maravilhoso!, esse remédio.

6 de mar. de 2010

No meio dos cults

No meio dos cults, eu jogava bola.
Oh, os cults eram legais e me aceitavam.
Na verdade eu tinha ido nadar, mas não sabia que naquele horário a psicina estava vazia. Entrei, de toca, na piscina sem água.
E começaram os jogos, vários jogos, com os cults barbudos e as moças de lacinhos.
Corrida, dança, jogos teatrais.
Sentia muita saudade dos jogos teatrais, atividades de corpo. Eu era boa naquilo. Mas, mesmo estando ali, participando de tudo, ainda não era do grupo (claro, era a primeira vez que eu ia). Eu tinha entusiasmo, e esse talvez fosse o problema, mostrar entusiasmo é natural demais. não é cult. Era preciso assumir um ar "tô nem aí para essa atividade, pela dança, pelo corpo, pela arte, mesmo sendo legal". E eu estava bem feliz. Na verdade, eu sabia que nunca seria do grupo, por mais que tivesse lacinhos e blusinhas verdes.
Distribuiram papeizinhos e disseram que era para fazer poesia. O tema: primavera. Agora a gente ia compartilhar nossa habilidade de explorar a linguagem verbal. Primeiro eu pensei: Acho que sei fazer poesia.
Um menino de óculos e barba bem preta falava um poema em inglês, ao som de guitarra (bem esterótipo de cult), com a voz nasalizada e irritadiça. Repetia, repetia e não tinha nada a ver com primavera. Apurei o ouvido e não se falou nem em flores nem em flowers.
Eu não entendia as regras do jogo (ninguém teve a delicadeza de me explicar). Quem era daquele grupo simplesmente sabia as coisas, não se explicava. Explicar regras? Eu deveria depreendê-las da situação. Não entendi se tínhamos que improvisar, se era pra escrever e ler, se era para ler o texto dos outros. Fiquei observando. As meninas me olhavam como se eu tivesse algo de rival.
Senti vontade de não falar nada. Não queria ler nada, especialmente porque eu queria falar de delicadeza, e aí ninguém ia gostar. Pensei em arranjar uma imagem de flores destroçadas, lembrei de flores que foram pesadas para mim... mas tudo soava clichê, e eu tive medo. Optei por não apresentar nada e talvez não voltar mais naquele espaço, onde eu adoraria me sentir bem, porque eles faziam uma coisas bem legais.

entupida

Ainda continua essa mania em mim de querer saber qual é o sentido certinho de ser nesse momento. Nesse momento.

Identificar o sentimento certinho.

Saber onde vibra.

Saber onde pesa.

Saber tanta coisa sobre mim que eu não sei.

E agora eu sei menos.


E isso paralisa – não falo da vida, falo do corpo.

E isso estagna – não falo dos projetos, falo do sangue.


É isso. Sangue e corpo inertes. É isso que eu sou agora.

Um coágulo nas veias do mundo.

2 de mar. de 2010

sabão neutro

hoje tomei a decisão:
frear o êxtase
o ápice

parar a maravilha
no ar, condensada

Agora
quando surge qualquer sementinha de felicidade sem limites
risos orgiáticos
boca aberta
olhos que ocupam têmporas
adrenalina no sangue
sabor de esôfago no riso
moleza de articulação
quadris de dança
respiração curta

eu digo: não

não
não é o catolicismo dos meus avôs que desatinou em mim
não
não é penitência de monge
não
não é enegrecimento pessimista

é para ver se o revés, a tristeza, não ultrapassa
é para a compensação
contrabalanço
é para ficar triste só devagarinho
pouquinho
sem chegar no fundão

viverei assim: sem apoteose e sem fundão

tenho medo do fundão