22 de out. de 2009

as panelas azuis da minha avó

Primeiro eu escolhi levar para mim um conjunto de panelas azuis. Era azul clarinho. Minha avó havia morrido há três anos e pela primeira vez eu visitava sua antiga casa - e não mais sua ausência.
Então eu lembrei subitamente daquelas panelinhas que até pareciam de brinquedo. A única diferença é que eu estava de adulto naquele momento.
As panelas: o azul e as florzinhas. Um leve enferrujado. Ferrugem leve. Panelas de ferro.
Ferro pintado de azul. Eta, lindeza!
- Elas estão como novas, há mais de 100 anos - este era o orgulho de minha avó: mostrá-las junto a esta frase. Ritual repetido por todos os anos de minha infância, em julhos de jabuticaba temporona ou no dezembro das mangueiras.
Para levá-las, eu tinha uma condição minha: desocupar alguma prateleira da minha casa empilhada. Pensei na estante da sala.
- Mas panela enfeita é cozinha.
Na sala. Tiraria os cds e colocaria em alguma caixa. No lugar, as panelas se enfileirariam, em ordem crescente (mas isto, como se sabe, é questão de ângulo). O ambiente, então mais azul, engrandeceria os olhos. Plano perfeito. Decidido.
No meio das panelas, uma mantegueira. De ferro azul. Clarinho. As mesmas florzinhas vermelhas. Coisa antiga e preciosa, escondida no gavetão dos tesouros.
- Mas elas estão como novas há quase 100 anos.
Sempre tive uma vergonha enorme desta frase, dita com tanto orgulho por minha vó.
Sentia vergonha deste novo tão novo. Nada pode ficar intocável por 100 anos.
- Aposto que se estivesse na sua casa, já não sobraria mais nada: poeira e ferrugem forte.
- Sim, na minha casa há poeira e ferrugem forte - pensei, levantando queixo e olhar.
Conclui, portanto, que aquele era mesmo o lugar perfeito para as panelas. Minha casa.
Não falei com ninguém da família. As panelas azuis eram minhas por direito. Toda a poeira e ferrugem que eu possuía legitimavam a posse daqueles objetos.
- Basta de proteção. Chega de isolamento. Intocabilidade malígna.
Levei as panelas com segurança e direito. Ninguém perceberia a ausência porque ninguém se dava pela presença. Contei com a ajuda de um amigo e sua força de homem para abrir a gaveta pesada. Seria nosso segredo: eu levaria as panelas no fundo da minha mala e ninguém poderia impedir.
Depois da mudança, já no primeiro dia de estadia, as panelas tremeram de susto. Antes de ir para a prateleira, suportaram exuberante comida. Nunca haviam experimentado aquelas iguarias. Jantar magnifíco.
Aí, a prateleira - até um novo jantar.
Curiosamente, depois de 6 meses, as panelas começaram a adquirir uma nova textura e colorido. O azul vibrou, o metal se acendeu e, até hoje, eu teria muita felicidade das panelinhas se não fosse eu ter acordado.
E lembrado que minha avó nunca teve panelinhas azuis. Que minha avó nunca guardou este tipo de utensílio no gavetão. Que os cds continuariam no mesmo lugar da prateleira.
Ou talvez não.

2 comentários:

  1. Nãããããããããoooo... oh deus... esses sonhos lindos malvados... são tão reais... pra onde será que vão? qdo a gente acorda dá até uma dúvida, né? demoramos um pouco para ter certeza de que lado estamos... Adorei seu texto e panelinhas azuis que vieram do lado de lá para enfeitar as prateleiras do seu blog, que são lidíssimas. :)

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  2. tem razão: o lado de lá, o lado de cá... foi assim mesmo que eu acordei!
    Mas vc sabe... os sonhos são reais. Os símbolos são reais. Às vezes a gente esquece desta realidade extra-concreta, surreal. rs!
    né não?
    um beijo e obrigada pelo comentário.

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Well... vejamos... eu poderia dizer que...
Fiquem à vontade!