28 de out. de 2009

aqui nos xacriabá

ciência do casamento
se um homem descascar uma laranja e a casca quebrar, ele não dá conta de uma família.

ciência do sonho
o sonho tem vários significados. Através dele, ficamos informados do que irá acontecer de bom ou de ruim na vida.
Ao sonhar com ovos, por exemplo, não pode contar pra ninguém, porque significa fuxixo. Levanta da cama bem cedinho, antes que o sol saia, vai ao fogo e abre um buraco no meio das cinzas, e cochicha três vezes, dizendo que sonhou com ovos. Pode também abrir um buraco e contar o sonho (três vezes), depois tampa com a terra e põe uma pedra por cima. Para o fuxico não sair. Depois disso, pode contar pra quem quiser.

caminho de santiago
é uma parte mais estrelada do céu, que anda muito. Os físicos chamam de via-láctea.

prévia do livro de Ducilene, Vanilde e Anide Xacriabá, que ficará pronto em 2010! O livro está sendo preparado, chama-se "Sabedoria, crença e ciência". E é lindo demais.

26 de out. de 2009

poeminhas de amor à-toa


foi impressão minha
ou
você me chamou de
demônio
iara sereia súcubo górgone
?
eu sou apenas uma mulher
ou uma intenção disso.
(PS: Não busques o anjo).

************

isso que você procura
aqui ali em Londres
nas fronteiras tropicais
além do Nilo ou do Prata
nas vidas intraterrenas
no cosmos da via-láctea

está

aqui

no meu regaço

bem aqui
onde há peito
e respiração

************

para ser amor, só falta isso: passividade
deixe-me assim feminina, esperando
isso que eu ainda não sei
tô lutando

para ser amor, só falta isso: ação
fique assim bem homem
na coragem ousada de quem toma

isso você não sabe
aprenda

o contrário:
os velhos erros

eu espero
corpo de espera
a visita é sua
estarei na janela
************
agora
só falta
saber seu cheiro
sabores
(da alma eu já sei)

23 de out. de 2009

O balde era marrom

Hoje, agora, há poucos minutos atrás, aconteceu coisa imensa: toda a tolice que eu carregava em mim se despejou em cima de meus próprios cabelos, deixando-me como naquelas cenas de novela em que a moça (pobre moça) leva um balde de tinta de um colega malvado. E ela, desolada, vai chorar escondida, toda verde ou amarela (nunca entendi por que elas não choram no chuveiro, tão mais prático)... Aí, vem sempre um moço bom. Ah, os moços bons... e seus lenços e caronas em cadilaque.
Pois é, hoje, agora, há poucos minutos atrás, caiu um balde de tolice e molhou os meus cabelos e omoplatas. E não houve moço que secasse minhas lágrimas, mas isto não tem problema pois já estou acostumada à hipocrisia de minha auto-suficiência e posso muito bem fingir que não preciso chorar. (Psst: os travesseiros continuam molhados).
O fato é que a tolice que habitava o meu ser se despreendeu com força e levou de mim um pouco de mim.

E eu soube que:

Número 1: não, os ímpetos de amizade não são universais. (Há alguns minutos atrás, eu achava que todas as pessoas do mundo seriam, em breve, amigas e compartilhariam comigo algumas flores de maio. Além de minha recompensa especial por sempre ter acreditado nisto).

Número 2: não, não se fabrica amor deste tamanho.

Número 3: a minha existência não vai salvar o mundo, só porque eu tenho ótimas idéias (cerca de 83 por dia).

Número 4: não há comunicações perfeitas e tudo isto pode mesmo dar em equívoco.

Número 5: não há a opção "foda-se". A merda sempre volta se não for bem saneada.

Daí que eu me senti bem limpinha. Depois da baldada de tolice na cabeça. Agora, sinto-me de alma lavada. Porque é mesmo bom ficar livre das ilusões.

Vixe, esqueci-me de um item:

Número 6: sim, ainda há muita ilusão presa no bueiro.

tempo tempo tempo tempo

Naquele tempo, eu andava pelo mundo a tomar cervejas, a exercitar o amargo, a vibrar risos metálicos.
Alucinada, agarrava-me a toda qualquer potência de afinidade que me parecia mais ou menos nítida.
Naquele tempo, eu não usava óculos.
Naquele tempo, que é agora, eu já amei porque soube da possibilidade.
Parece confusa esta simplicidade?: reencontrar o amor que não se conhece.
Afirmo.
A separação antes do beijo...
A euforia diluída antes da festa...
Tudo possível.
Afirmo.
Veja: estou selando nossa separação, porque já basta de amor por hoje.
Mas ainda assim, cantarolo, na esperança de estratégia comunicativa de efeito: "num outro tipo de vínculo." Você conhece a canção, não?
Eu disse num outro tipo de vínculo. Atente para o enigma: veja o contrário.
Eu aguardo sua inteligência pois estou com muita sede.

22 de out. de 2009

as panelas azuis da minha avó

Primeiro eu escolhi levar para mim um conjunto de panelas azuis. Era azul clarinho. Minha avó havia morrido há três anos e pela primeira vez eu visitava sua antiga casa - e não mais sua ausência.
Então eu lembrei subitamente daquelas panelinhas que até pareciam de brinquedo. A única diferença é que eu estava de adulto naquele momento.
As panelas: o azul e as florzinhas. Um leve enferrujado. Ferrugem leve. Panelas de ferro.
Ferro pintado de azul. Eta, lindeza!
- Elas estão como novas, há mais de 100 anos - este era o orgulho de minha avó: mostrá-las junto a esta frase. Ritual repetido por todos os anos de minha infância, em julhos de jabuticaba temporona ou no dezembro das mangueiras.
Para levá-las, eu tinha uma condição minha: desocupar alguma prateleira da minha casa empilhada. Pensei na estante da sala.
- Mas panela enfeita é cozinha.
Na sala. Tiraria os cds e colocaria em alguma caixa. No lugar, as panelas se enfileirariam, em ordem crescente (mas isto, como se sabe, é questão de ângulo). O ambiente, então mais azul, engrandeceria os olhos. Plano perfeito. Decidido.
No meio das panelas, uma mantegueira. De ferro azul. Clarinho. As mesmas florzinhas vermelhas. Coisa antiga e preciosa, escondida no gavetão dos tesouros.
- Mas elas estão como novas há quase 100 anos.
Sempre tive uma vergonha enorme desta frase, dita com tanto orgulho por minha vó.
Sentia vergonha deste novo tão novo. Nada pode ficar intocável por 100 anos.
- Aposto que se estivesse na sua casa, já não sobraria mais nada: poeira e ferrugem forte.
- Sim, na minha casa há poeira e ferrugem forte - pensei, levantando queixo e olhar.
Conclui, portanto, que aquele era mesmo o lugar perfeito para as panelas. Minha casa.
Não falei com ninguém da família. As panelas azuis eram minhas por direito. Toda a poeira e ferrugem que eu possuía legitimavam a posse daqueles objetos.
- Basta de proteção. Chega de isolamento. Intocabilidade malígna.
Levei as panelas com segurança e direito. Ninguém perceberia a ausência porque ninguém se dava pela presença. Contei com a ajuda de um amigo e sua força de homem para abrir a gaveta pesada. Seria nosso segredo: eu levaria as panelas no fundo da minha mala e ninguém poderia impedir.
Depois da mudança, já no primeiro dia de estadia, as panelas tremeram de susto. Antes de ir para a prateleira, suportaram exuberante comida. Nunca haviam experimentado aquelas iguarias. Jantar magnifíco.
Aí, a prateleira - até um novo jantar.
Curiosamente, depois de 6 meses, as panelas começaram a adquirir uma nova textura e colorido. O azul vibrou, o metal se acendeu e, até hoje, eu teria muita felicidade das panelinhas se não fosse eu ter acordado.
E lembrado que minha avó nunca teve panelinhas azuis. Que minha avó nunca guardou este tipo de utensílio no gavetão. Que os cds continuariam no mesmo lugar da prateleira.
Ou talvez não.