31 de jan. de 2010

Medo, sensatez e ousadia: experiência de limites

Formávamos uma equipe de 5 viajantes, íamos por um lugar lindo, muito irreal por causa das cores. Lindo e artificial: um mar cor-de-piscina, pedras cor-brilho-de-fogo, paisagens de perigo e altura não amedrontadoras. Andamos até onde era permitido aos turistas, o fim da linha era pedra e água. Alguém deu uma idéia:
- Dá pra seguir. Pela água. E escalando as pedras. É fácil, basta ir pelas laterais, nadando devagar.
Havia um redemoinho de águas. Águas que vinham de mais de uma direção e se misturavam, aflitas, num sulco formado por pedras, uma galeria estreitinha. Se alguém escorregasse e caísse no redemoinho bateria contra as pedras, parecia grave. Mas era só ter cuidado. Próximo às pedras: um paredão, lindíssimo. Rocha. Brilhava muito, por causa da água e do sol.
- Isso não é um canyon, porque nos canyons as linhas são retas, e aqui elas dançam. Meus amigos observaram esse detalhe que eu achei bastante sem fundamento, mas tudo bem.
Depois, tinha uma ruína, bem conservadinha, castelo antigo só de pedras, com escadarias, com muita gente, pois quase todos se aventuravam a atravessar as águas. Não gostei muito de lá e não soube explicar o porquê.
Olhei o redemoinho atravessado, novo ângulo, e vi que realmente não era perigoso. Ao contrário, era até divertido, dava para brincar de escorregador nas pedras, sendo levado pelo redemoinho.
Comecei a ficar com medo porque vi que meus amigos da expedição intencionavam continuar ainda mais, e agora deveríamos nadar até uma ilha, uma distância grande, no mar. Pensei: isso não é fácil. Mas todos enfatizavam a beleza do lugar e a recompensa do esforço.
- E de lá se pode escolher entre dois caminhos, um leva a Macchu Picchu e outro leva a mais paraísos com água cor de piscina.
Entendi: o caminho era sem fim. E muito perigoso. E eu já estava satisfeita de paraíso. No mais era mesmo muito longe e perigoso:
- Nadar no mar eu não sei. Não posso.
Mas todos queriam ir. Eu voltaria sozinha? Insistiria para que ninguém fosse? Tentei achar facilidades:
- Então quer dizer que há um trecho raso, onde se anda, quer dizer que há pedras onde se pode segurar? Ninguém vai nadar tantos quilômetros, não é mesmo? disse rindo, como se brincasse com o óbvio.
Ninguém respondeu, porque não havia nenhuma trégua no percurso e eles não queriam me dizer a verdade, que era:
- Não. É tudo fundo e difícil e você deverá nadar até a ilha.
Pensei em ir e arriscar. Na pior das hipóteses... eu morreria. Não era tão grave. Mas morrer atrapalharia o passeio dos meus amigos de todo jeito. Não era sensato.
E eu disse, com muita coragem:
- Eu não vou. Podem ir. Eu volto daqui. E está tudo bem.
Imediatamente, todos se encheram de medo. E revelaram ser incapazes de tal travessia.
Então eu acordei feliz, sorrindo mesmo (por quê?). Mas fiquei com uma dúvida: eu deveria ter atravessado? Talvez, se eu tivesse atravessado, eu poderia olhar de outro ângulo e achar perto, não longe e difícil (como foi com o redemoinho de águas). Talvez eu morresse mesmo. Eu fui covarde? Ou intuitiva?
Vixe... Difícil saber por enquanto.

sonho cilada

Foi engraçado: mais um beijo e mais uma suspensão do tempo. Nos beijamos e o tempo parou, mas nada a ver com a idéia de afastamento da realidade que parecem sentir os românticos, era mais como uma falta de tato, uma estagnação, um incômodo. O fato é que o beijo selava um compromisso (mais uma referência medieval nos envolvendo!). Depois sentamos numa mesa de bar, com amigos. Os amigos marcavam mais um compromisso, eram testemuhas de que estávamos juntos por livre e espontânea vontade. Ficar ali no bar, com amigos, desempenhando uma função social tão antiga: mostrar-se em casal... me surpreendeu: "então você sabe namorar!".
Levantei-me para ir ao banheiro ou qualquer coisa banal do tipo, e na volta recebi um bilhete do garçom, sem remetente. Você fez uma carinha de quem tinha ciúme, de brincadeira, quanto tempo eu demoraria para te descobrir remetente?

O bilhete: verso de um panfleto, boa gramatura, como a de um cartão postal, cor marrom claro, uma ranhura na diagonal devido a uma dobradura descuidada (o papel devia movimentar-se há alguns dias em uma bolsa ou bolso, daí a marca). Papel usado de improviso para a escrita.

As palavras, de lindas, não consegui memorizar. era algo como:

sei pouco de você mas dou importância ao que sei
sei que você tem medo
sei que você gosta de verde
as pessoas falam de sua delicadeza
você deve me dar um beijo
vamos saber mais coisas depois

achei lindo e sorri muito. Então você sabia mesmo namorar. Te beijei e não falei quase nada, apenas: "Um admirador secreto, então". Nessa altura do campeonato, percebi que podia pegar na sua mão o quanto quisesse e com naturalidade. Podia te dar beijinhos (como o que acabara de dar), nossos corpos não possuíam mais aquela trava anterior, não estávamos mais presos aos episódios e constrangimentos de nosso passado (desencontros e máscaras). Era incrível, você sabia mesmo namorar, normalmente. Não paralisávamos mais o tempo, você havia cedido e eu simplesmente embarquei. Eu me sentia segura e feliz porque recebia de você as impressões: "Eu gosto de você na medida" e "Eu te escolhi para mim" e "Sei da reciprocidade".
O curioso é que, ao acordar, senti de imediato: "Não." e "Não quero mais, não para esta cilada". O sonho me exigia uma resposta, como se de dentro viesse a questão: "Posicione-se." E eu: "Não acredito. Quem quer me enganar? A resposta é: F, de falso, porque foi fácil demais."
Foi estranho mesmo.

29 de jan. de 2010

catálogo

não
nao é possível que
já se viu
todos os passarinhos arbustos e besouros.
eu acho que ainda tem mais
tem mais.

vamos sair por aí catalogando, meu amor.
só catalogando.

28 de jan. de 2010

at night

é bom que você tenha algo para segurar
ao contrário será difícil saber onde pôr as mãos
segure um cigarro ou uma cerveja
- é o que fazem

escolha o ar que cabe ao rosto
não há muitas opções

algo entre uma paisagem e uma procura

paisagem
porque você será observado

procura

pois olha-se muito ao redor
faces do amor
especialmente na sua precipitação de desejo

é importante saber da penumbra
na penumbra é mais difícil enxergar
para além dos rostos lindos e saudáveis

(nem tão lindos e saudáveis: lembre-se da penumbra)


caso você não tenha nada para segurar,
capriche na cara: o meio sorriso, o ar de quem aprecia
a mão cruzada, meio cruzada, anelando cabelos

esforce para compor com seu corpo
a música o ambiente a companhia

a sorte é que é sempre cheio
então se esbarra muito
pede-se licença
daí uma sensação de ocupação:
arreda-se aqui
uma passagem, por favor
licença, moço

numa noite
deste tipo
a night
esbarra-se muito
passa-se por todos os lados
chega-se a lugar nenhum.

capitalismo

quando o meu coração entender
plenitude de entendimento
que eu não tenho nada
a não ser solidão
que eu não sou nada
a não ser sozinha

aí,
o que vier é lucro.

da saudade

Se eu tivesse um morro,
assim
se eu fosse descobridora
andasse pelo mundo
encontrando morros tempestades e bromélias

Daí
se eu encontrasse um morro
um morro que fosse meu
eu daria o nome:
"Morro de saudade"

e o daria a você, meu amor,
pois, mesmo não sendo viajante,
é assim que eu me sinto

eu morro de saudade.

27 de jan. de 2010

o fio

você lembra
o princípio é um fio
(mesmo que se pergunte
se fio tem ínicio
infinita linha)

fio:
eletricidade

fio:
a mão

eletricidade e mãos:
nossos fios

uma andorinha no fio:
os segredos

o fio da voz
triz

"Conta os fios do meu cabelo"?
Vamos fazer um fiin?

e ainda há as veias
e o fluxo elétrico dentro delas

22 de jan. de 2010

o amor

- vocês são namorados?
- bem, não sei dizer ao certo... acho que seremos, no futuro.
- ah, vocês estão se aproximando agora!
- não, estamos começando a nos afastar.

cantiga de amigo

Você me veio como um soldado e disse "Vou partir". Você era o meu amado e faltava um beijo, eu tomei a decisão de que lhe daria lábio no momento exato em que me beijasse rosto. Fiz isso e o tempo assuspendeu-se. Tentei mexer a língua para experimentar o quão paralisada estava naquele tempo que parou, sua boca assim como seu corpo de soldado pequeno estava dura como se estivesse morto - mas era só o tempo que parou. Minha língua mexia por dentro dela mesma, encostada inerte a sua. Só por dentro havia movimento, consciência. Por fora, ficamos mortos de línguas grudadas. Você me disse com uma coragem baixinha: "Sua amiga fez a mesma coisa". Me dei conta de que não estávamos sozinhos, uma amiga gordinha e de cabelos modernos sentada a meu lado conservava a boca em forma redonda de beijo paralisado. Abracei a amiga, por respeito a seu gesto - como o meu. E pensei profundo: "Então não sou única em sua vida, soldado?" Uma certeza me dominava, você havia parado o tempo para não aprofundar em beijo. Uma dúvida atormentava, teria sido eu?
Mas você já estava de saída e ficamos, as mulheres, unidas contra você, olhando de longe.
Nossa vingança foi pensar: "É um soldado fraco, talvez morra na guerra."

13 de jan. de 2010

impotência

é. eu não posso dizer mais do que sim ou não.
não posso te enfiar dentro de mim, para além das óbvias mucosas, e te mostrar o que é.
e o que é. é.
só é.
só.
(nesse caso de solidão também)

se eu dissesse "ódio" ou "amor" mil vezes
você entenderia o que eu sinto?

dizer é nada
quase sempre

é claro: há a poesia e as fórmulas matemáticas
os exercícios de exatidão

e há
poetas e matemáticos e físicos e filósófos
que só existem diante do cosmos
esse
que nos diz o tempo todo:
"Você é nada, meu bem!"
"Você vale muito pouco, honey."

E no final,
- eu tenho medo.
- que bom. Coragem mesmo não é coisa para nós, os humanos.

7 de jan. de 2010

busca

"Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí... quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!" (Mário Quintana)

a água

"A água é o símbolo das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e desconhecidas. Acontece muitas vezes no sonho a gente estar sentado à borda da água a pescar. A água. símbolo do espírito ainda inconsciente. encerra o conteúdo da alma, que o pescador se esforça para trazer à superfície, e que deverá alimentá-lo. O peixe é um animal psíquico."
"A água é dada por Jeová à terra, mas trata-se de uma outra água, mais misteriosa: provém da sabedoria, que presidiu, no momento da criação, à formação das águas. No coração do sábio reside a água; ele é semelhante a um poço e a uma fonte, e suas palavras têm a potência de uma torrente."
Dicionário de símbolos. Gheerbrant & Chevalier. [Pedacinhos]

um ser da terra no mundo da água

Lá da pedra
cachoeira
dou um salto pulo alto
mergulhar no inconsciente

águas sem pé no chão

medo tanto
o verdadeiro
que preciso respirar
e eis que me vem água
não ar

água desta água
de textura das memórias

água pelo nariz
água nos ouvidos na garganta
nos buracos todos que eu possuo
os buracos do diálogo
com o mundo

eu de dentro eu de fora
mundo aqui mundo acolá

é um perigo sufocar

4 de jan. de 2010

é isso mesmo

eu não sei sobre a beleza
a feiúra é mais fácil?

eu não sei se eu quero
porque não saber é o verbo do momento

eu olho para o mundo e não sei nem de mim

eu não sei o que será...
sei pouco sobre o que foi

eu não sei das permissões
nem dos merecimentos
eu não sei como dizer
não sei se é preciso

o que tenho é parco e pouco


eu devo calar?
eu posso parar?

Mas
eu sei que é preciso manter a linha
da coluna
do pensamento rumo aos céus

alguma linha que não seja reta

a linha oscilante do equilíbrio